quinta-feira, 9 de julho de 2015


E se a Grécia sair do euro?


Diversos autores

Sempre que um país passa por problemas económicos, surge um grupo de economistas dizendo que tudo pode ser corrigido caso o governo desvalorize simplesmente a moeda — isto é, deprecie a sua taxa de câmbio.

Apesar de não ser possível encontrar um exemplo de país que tenha saído da pobreza e se tenha tornado próspero depreciando a sua moeda em relação às outras, tal «solução» segue impavidamente em moda. A desvalorização da moeda é uma panaceia que ainda atrai muitos «pensadores» e continua sendo uma ideia extremamente popular entre alguns círculos de economistas.

Aproveitando o momento, façamos um exercício mental para analisar as prováveis consequências da desvalorização. Vamos utilizar a Grécia como exemplo.

Suponhamos que a Grécia, que hoje faz parte da zona do euro, conseguisse de alguma forma voltar a emitir um novo Dracma, e que essa nova moeda se desvalorizasse rapidamente, passando de um dracma por euro para dois dracmas por euro num curto período de tempo (um mês, talvez), o que representaria uma desvalorização de 50%.

Vamos também supor que o governo utilize os seus poderes coercivos para estipular que todas as obrigações existentes em euro, tais como títulos e contractos de trabalho, para todas as pessoas e entidades na Grécia, sejam unilateralmente convertidas em dracmas na relação de 1 dracma para 1 euro.

O dracma agora é uma moeda independente e com câmbio flutuante, e a sua taxa de câmbio está relativamente estável perto de 2 dracmas por euro (uma taxa até bastante optimista).

Sendo assim, o valor total da dívida do governo da Grécia, em termos de euro, cai 50% (repetindo: a moeda desvalorizou-se 50% em relação ao euro, mas todos os passivos foram convertidos de euro para dracma à taxa de 1 para 1).

Consequentemente, as dívidas de todos os outros devedores na Grécia, tais como empresas, bancos e pessoas, também são reduzidas em 50% em termos de euro.  (Se uma empresa devia 100 milhões de euros, agora ela deve 100 milhões de dracmas.  Mas como 1 dracma vale 0,50 euro, 100 milhões de dracmas são 50 milhões de euros.)

Em princípio, isso não é um grande benefício para os endividados gregos, entre eles o governo, pois o rendimento, denominado em dracmas desvalorizados, também caiu 50% em valores de euro. Tanto a dívida quanto a receita tributária do governo foram simultaneamente desvalorizadas, e o mesmo ocorre com os salários das pessoas e as suas dívidas.

No entanto, não vai demorar muito para que as receitas tributárias, as receitas das empresas e os salários das pessoas comecem a subir (em termos nominais) em consequência tanto da inflação monetária que agora o governo grego poderá causar (ao sair do euro e adoptar uma moeda própria, o governo está mais livre para inflacionar a moeda) quanto à grande inflação de preços que será causada pela desvalorização da moeda.

Como consequência de tudo, os calotes nas dívidas diminuirão. O declínio nos calotes irá permitir que os bancos gregos, até então descapitalizados por causa de empréstimos ruins, readquiram alguma saúde financeira. Para completar, os activos estrangeiros dos bancos gregos (como títulos do governo alemão ou empréstimos feitos a empresas italianas e espanholas) irão dobrar de valor em termos de dracma, o que irá melhorar os seus balancetes consideravelmente.

Com a redução dos calotes, as falências corporativas também irão diminuir, o que significa menos desemprego. Os trabalhadores gregos, cujos salários foram reduzidos à metade em termos de euro, agora estão mais «competitivos» (isto é, recebem menos) que os de Portugal, Espanha e Itália.

Por outro lado, as empresas gregas voltadas exclusivamente para o mercado interno não usufruirão de grandes benefícios, pois os trabalhadores gregos não serão capazes de comprar muita coisa com os seus salários desvalorizados. Por causa da súbita desvalorização cambial, o poder de compra dos gregos caiu. O custo dos bens e serviços importados dobrou, o que reduz ainda mais o rendimento disponível dos trabalhadores. Tudo o que foi produzido no país e que não foi consumido (pois o rendimento real da população caiu), será transformado em excedente exportável.

Aqueles assalariados mais bem pagos da Alemanha e da Inglaterra, que querem escapar dos seus respectivos Invernos e estão à procura de uma praia (ou mesmo de um local barato para viver quando se aposentarem), trocarão a Espanha pela Grécia e aproveitarão todas as ofertas em dracmas desvalorizados.

Sendo assim, a Grécia vivenciará um forte aumento nos negócios e nas contratações relacionadas com o turismo e, talvez, no sector da exportação. Por causa disso, a economia parecerá estar a melhorar, e as receitas tributárias do governo estarão aumentando, pelo menos em termos nominais de dracmas.  Os preços ao consumidor subirão aproximadamente 20% no primeiro ano da desvalorização, e os economistas aplaudirão efusivamente, pois a deflação de preços «foi superada».

Principalmente por ter começado com valores pequenos na decorrência da crise, a bolsa de valores da Grécia irá disparar. Mas ela teria de subir pelo menos 100% apenas para se manter com o mesmo valor em termos de euros.

Este cenário parece agradável, não?

Mas há outros fenómenos a ocorrer. O que acontecerá com todos os bancos alemães e franceses que fizeram empréstimos para as empresas gregas? O que acontecerá com todos aqueles títulos do governo grego na posse dos bancos alemães? Os títulos e os empréstimos agora valem apenas 50% do seu valor da metade em termos de euro. Os bancos alemães e franceses terão de ser socorridos, e milhões de correntistas alemães e franceses darão esse socorro compulsório por meio de uma redução nas suas contas bancárias (exactamente como ocorreu em Chipre).

Os destinos turísticos em Espanha e no sul da Itália perderão clientes e, como consequência dessa súbita perda de receitas, começarão a dar calotes nas suas dívidas. As indústrias de cimento e naval de outros países europeus não conseguirão concorrer contra as importações baratas da Grécia, e também começarão a dar calotes nas suas dívidas. O desemprego nestes países irá subir.

O trabalhador grego tem agora um novo emprego, mas o seu salário, reduzido a metade em termos de euro, nunca mais compra tudo aquilo que antes ele conseguia comprar. Os preços internos aumentam continuamente, e, embora o seu salário também aumente em termos nominais, ele não acompanha a subida dos preços. Os pensionistas gregos são os mais afectados, principalmente aqueles cuja poupança estava nos bancos gregos (e não noutros países da zona do euro).  Ao passo que os seus semelhantes em França e na Alemanha tiveram uma perda de 20% nas suas contas bancárias (20% é o total de títulos gregos na posse dos bancos europeus), os poupadores gregos descobrirão que agora compram aproximadamente 50% menos com a sua poupança (por causa da desvalorização cambial e da inflação de preços crescente na Grécia).

O sistema tributário grego certamente não será ajustado de acordo com a desvalorização. A consequência será a de que, com rendimentos nominais maiores, uma maior fatia dos ganhos será tributada. E o resultado final é que pessoas com rendimento real mais baixo — e até então isentas — também terão de pagar imposto de rendimento. Isso gerará um grande fardo sobre toda a economia, que poucos serão capazes de identificar. Tradicionalmente, a culpa será atribuída aos altos preços da energia importada.

Após algum tempo — talvez alguns anos —, os salários dos trabalhadores gregos já terão subido, em termos nominais, o bastante para acabar com aquela «vantagem comparativa» inicial.  Os impostos reais mais altos começarão a introduzir uma persistente obstrução na economia grega.

Adicionalmente, o sistema financeiro grego já se tornou deficiente e inconfiável. Após a desvalorização, ninguém está disposto a conceder mais empréstimos em dracmas. Afinal, quem vai querer correr o risco de ter os seus activos subitamente desvalorizados novamente? As taxas de juros domésticas já subiram e estão altas, e o volume de empréstimos está baixo.

As grandes empresas ainda conseguem alcançar empréstimos em euros, mas isso não estará disponível para famílias e pequenas empresas. As famílias, que já foram prejudicadas uma vez, não irão manter a sua poupança nos bancos gregos. O mais provável é que elas descubram maneiras informais de poupar e investir sem recorrer ao sistema financeiro. Já as famílias mais sofisticadas irão simplesmente utilizar os bancos alemães (porque os mais ricos já retiraram quase todo o seu dinheiro dos bancos gregos), e a sua poupança e o seu capital jamais retornarão à Grécia.

Por tudo isso, a economia grega apresentará uma baixa criação de capital, um ambiente de investimentos totalmente distorcido, no qual apenas as grandes corporações conseguem financiamento, e uma baixa criação de empregos. A economia volta a estagnar-se. Consequentemente, o governo volta a incorrer em déficits orçamentais, uma vez que as receitas tributárias começam a cair e a procura por serviços na Segurança Social cresceram. Como o governo não consegue endividar-se em dracmas — só a taxas de juros proibitivas —, terá de se endividar em euros. Mas isso também será difícil, pois o governo já se mostrou inconfiável. A única opção será aumentar ainda mais os impostos.

À medida que essas dificuldades se vão acumulando, alguns economistas acreditarão ter encontrado a solução: desvalorizar novamente! Essa ideia ganhará o imediato apoio dos grandes exportadores e do sector do turismo, os quais adorariam voltar a ter uma «vantagem competitiva» em termos de mão-de-obra barata.

Como esses sectores antes já se tinham beneficiado economicamente, tornaram-se mais influentes politicamente. Por outro lado, os sectores que foram prejudicados pela desvalorização, como as empresas que dependem de importações e as voltadas exclusivamente para o mercado doméstico, perderam toda a sua influência política. Sendo assim, o sistema político passa a ser orientado apenas pela ideia de mais desvalorizações.

Com a imposição de novas desvalorizações, todo o ciclo se reinicia: o sector exportador e o sector turístico ganham um impulso temporário, mas todo o resto dos trabalhadores gregos perde poder de compra, e o seu custo de vida sobe. A inflação de preços dá outro salto. O imposto de rendimentos continuará a não ser corrigido pela inflação — pois o governo precisa de todas as receitas possíveis —, o que gerará um confisco cada vez maior do rendimento real das pessoas e empresas, o que, por sua vez, prejudicará ainda mais os investimentos.

Já os outros países da zona do euro muito provavelmente não ficarão passivos perante os sectores exportador e turístico gregos. É provável que imponham pesadas tarifas sobre as importações e também sobre a conversão de euros em dracmas.

A conclusão é que a desvalorização funciona apenas por algum tempo, e é benéfica apenas para poucos sectores muito específicos — e ainda assim apenas no curto prazo.

Em termos gerais, a desvalorização da moeda prejudica toda a população, pois esta é roubada do seu poder de compra, é submetida a uma grande inflação de preços, e acaba ficando sem acesso a bens importados de maior qualidade.

Um governo que desvaloriza a sua moeda está, na prática, fechando as suas fronteiras aos bens estrangeiros, isolando a sua população (e prejudicando principalmente a classe mais pobre, agora proibida de comprar produtos estrangeiros mais baratos), reduzindo o seu rendimento, e destruindo enormemente o seu padrão de vida.

O economista que acredita realmente que desvalorizar a moeda é o caminho para a prosperidade está, na prática, dizendo que uma sociedade formada por uma minoria exportadora e rica e por uma maioria que não tem nenhum poder de compra é o arranjo ideal. Está dizendo que uma redução compulsória do rendimento total da população representa prosperidade e enriquecimento. Não faz absolutamente sentido nenhum.

O que aconteceu com a Argentina em 2002, quando a súbita desvalorização do peso fez com que fosse quase impossível para muitas mães comprarem leite para os seus filhos, pode perfeitamente acontecer com a Grécia em 2015. É muito difícil uma desvalorização da moeda passar impune.




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