domingo, 12 de junho de 2016


Mouraria ou Chinatown?


Maria João Marques, Observador, 8 de Junho de 2016

Já estamos em boa hora de começar a ver uma expropriação de propriedade privada como o último recurso de qualquer problema. E de fazermos t-shirts com o slogan «nem mais um metro quadrado para a CML».

Fernando Medina – presidente da Câmara de Lisboa em punição por todos os pecados da capital – é o político socialista exemplar. «Inimigo dos automobilistas e voraz com os recursos dos lisboetas» seria um bom mote para a sua campanha de 2017.

Fernando Medina – presidente da Câmara de Lisboa em punição por todos os pecados da capital – é o político socialista exemplar. «Inimigo dos automobilistas e voraz com os recursos dos lisboetas» seria um bom mote para a sua campanha de 2017.

Já muita gente escreveu sobre a mesquita que a CML entendeu por bem tomar as dores de construir e a hipocrisia flagrante de pretender defender o Estado laico radical, rasgando contratos de associação livremente estabelecidos pelo Estado para poupar as susceptíveis criancinhas à exposição ao ópio do povo por um lado, e, por outro, correr a substituir-se à comunidade islâmica na construção de uma mesquita. E se calhar atrás da mesquita vem a madrassa e a querida câmara socialista de Lisboa é bem capaz de decidir – para mostrar como somos tolerantes, multiculturais e essas virtudes teologais do credo esquerdista – contribuir financeiramente para a catequese muçulmana dos alunos da mesquita da Mouraria. Depois, claro, de ter protegido as crianças portuguesas – mesmo as das famílias ignaras que até queriam e gostavam – da exposição a essa praga maior da vida portuguesa que é o cristianismo.

Para os argumentos sobre laicidade dirijam-se se faz favor aos textos de João Miguel Tavares e Sebastião Bugalho. Eu gostava de acrescentar outro argumento: o Estado devia (como quase sempre) estar quieto. Ao contrário do que dizem os fãs do projecto – e até João Miguel Tavares – não faz qualquer sentido construir naquela zona uma mesquita. Porque há vários séculos aquela zona era habitada por islâmicos devemos agora lá construir uma mesquita? Porque se abriram lá lojas de proprietários paquistaneses e bangladechianos temos de lhes oferecer um local de culto? E a população chinesa da zona, que é pelo menos tão numerosa e visível? Está já em estudo pelos assessores dilectos de Medina a construção de um templo a Confúcio? Outro a Mêncio? Foi encomendada alguma estátua da bodhisattva Guanyin?

E que dizer da injustiçada população hindu que durante muitos anos habitou e trabalhou naquela mesmíssima zona? Nunca dei por nenhum canto – menos ainda construção de três milhões de euros a expensas do contribuinte da praxe – evocativo de Shiva. Ou – para ser visualmente ainda mais apelativo – um altar a Ganesh, o deus elefante. Mas devo estar a ser injusta: provavelmente foi algum temor de Kali, a destruidora, que impediu os socialistas lisboetas, tão amantes do culto alheio, de assim ignorarem os justos anseios religiosos dos muitos hindus que já passaram pela Rua da Palma.

Por várias razões conheço bem a zona de Lisboa onde se pretende construir a mesquita. Uma delas foi ter morado uns anos um bocado mais para cima na encosta e mais para o lado. Recuperei uma casa por lá quando ainda toda a gente me olhava com ar de «já tomaste os comprimidos?» quando lhes dizia que ia morar para o meio da Lisboa antiga – e, então, muito desmazelada.

Foi uma epopeia. Os vizinhos, uns velhotes reformados e outros possivelmente recebedores do RSI e permanentemente desocupados, tinham como entretenimento diário chamarem a polícia municipal para vasculharem as obras que fazia (isto depois de um tempo longo à espera da aprovação do projecto de arquitetura e das especialidades e da emissão da licença de obras). O gabinete técnico claramente via como missão civilizacional dificultar de formas imaginativas a recuperação de um apartamento. Havia que defender uma zona com população envelhecida e habitações degradadas da intromissão de pessoas de vinte anos que lá queriam residir. Que lata (a minha, obviamente).

Entretanto estes cenários persecutórios já se alteraram. O licenciamento ficou mais fácil – e as loucuras dos arquitectos camarários que pretendiam pôr as pessoas a viverem naqueles prédios como se vivia em 1795, a bem da pureza arquitectónica da zona, foram contidas. Eu, às tantas, mudei-me.

Vieram os paquistaneses e os chineses. Depois vieram os turistas e, também, mais gente nova que, como eu, aprecia casas antigas restauradas e as vistas deslumbrantes de Lisboa. Há mais jardins (aqui aplaude-se a CML) e os prédios têm vindo a ser recuperados – por privados. Os problemas de estacionamento continuam por resolver (assim vão ficar, que a prioridade do PS são ciclovias, que ninguém usa, espalhadas pela cidade) e, sobretudo, os prédios propriedade da CML estão sem obras, velhos, estragados.

Conto isto para mostrar que aquela zona é dinâmica – também graças aos imigrantes que lá se instalaram, que dão colorido, movimento e interesse. A população tem tido alterações nos últimos anos e não cabe à CML cristalizar o bairro com uma mesquita como se os muçulmanos que vivem em Lisboa lá fossem sempre ficar.

E se se fizer mesmo questão de fornecer um local para uma mesquita naquela zona? Há soluções muito melhores e mais baratas: é conceder à comunidade islâmica o uso por n anos de um dos prédios decrépitos da CML na zona. Já estamos em boa hora de começar a ver uma expropriação de propriedade privada como o último recurso de qualquer problema. E de fazermos t-shirts com o slogan «nem mais um metro quadrado para a CML».





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