quarta-feira, 15 de junho de 2016
Pré-match
Alberto Gonçalves, Diário de Notícias, 12 de Junho de 2016
1. Os portugueses são os melhores, decretou o presidente Marcelo. No progresso económico? No avanço científico? Nas artes? Na indústria automóvel? Na gestão de bancos públicos? Em receitas de bacalhau, vá lá? Nada disso, que um chefe de Estado não perde tempo com ninharias: no futebol, no fundo aquilo que importa. Vem aí o Europeu da modalidade e há que «mobilizar» os cidadãos para um desígnio a que só os vende-pátrias serão alheios. Em Belém, o PR aproveitou ainda para informar a selecção de que já é campeã «à partida», uma adenda pertinente se tivermos em conta que à chegada as coisas não costumam correr bem.
2. Em vez de receber a selecção, o primeiro-ministro visitou-a. Como é hábito, levou consigo tropecções na língua e ameaças à Europa, especialmente à França, sobre a qual exigiu «vingança». Como é hábito, a Europa tremeu. À saída da Cidade do futebol (?), o dr. Costa confessou-se «menos angustiado» com a situação clínica de Ronaldo. Por mim, confesso-me angustiadíssimo com a situação clínica das pessoas que desprezam momentos assim históricos, preferindo consumir-se com o «resgate» da CGD ou similar assalto, perdão, auxílio ao contribuinte.
3. A fim de conquistar Paris, a selecção apetrechou-se com um hino. Para garantir o sucesso, trata-se de uma cantiga «adaptada» do sr. Abrunhosa, que objectivamente descreve a sua criação: «Tem um efeito colectivo inebriante e quase mágico.» Com versos do calibre de «Tudo o que nos dás, nós damos-te a ti e somos Portugal!», não admira. O sr. Abrunhosa acrescenta que a cantiga «já é das pessoas, já não é minha», mas não falou em partilhar os direitos autorais. Dado que temos de pagar os salários sem tecto da administração da CGD, cada cêntimo viria a calhar.
4. Pelos vistos, o lema da selecção é «Não somos 11, somos 11 milhões», um recenseamento apressado que despertou a ira do deputado do PS Paulo Pisco (decerto um pseudónimo): «Há cinco milhões de portugueses espalhados pelo mundo que se sentem excluídos.» Enquanto, com um nó no estômago, imaginamos multidões de compatriotas a sofrer os horrores da exclusão em Nova Jérsia e no Luxemburgo, consola um bocadinho ler que o sr. Pisco «já alertou o ministro dos Negócios Estrangeiros, Augusto Santos Silva, para esta questão, durante uma audição na comissão parlamentar de Negócios Estrangeiros e Comunidades Portuguesas». E consola imenso saber que nós pagamos o salário do sr. Pisco, aliás bastante inferior ao dos administradores da CGD.
5. Já havia o anúncio da cerveja patrocinadora da selecção da bola, onde três ou quatro moços alucinados gritavam «O futebol somos nós!» como se quisessem assassinar o espectador. Agora há o anúncio do supermercado patrocinador da selecção da bola, com imagens de tribos bárbaras, cuspidores de fogo, explosões, lobos ferozes e um tom geral de ameaça ao «estrangeiro»: «Ouvem rosnar/ Sabem com quem estão a lidar/ Temos mais olhos que barriga/ E esta fome já é antiga.» Para a próxima, outro patrocinador exibirá a selecção da bola a mastigar as entranhas dos adversários. Ou, se quiserem mesmo meter medo, o «buraco» da CGD.
6. Isto foi apenas o início. Seguem-se semanas de autocarros, histéricos, bêbados, sardinhas, o «melhor do mundo», mensagens das vedetas nas redes sociais, berraria, análises de peritos, a contagem do tempo que o treinador demora nos lavabos do avião (56 segundos, afiançou um «jornalista») e, se a selecção vencer, 609 milhões de euros para a economia nacional, um sétimo da nova «injecção» na CGD. Há países malucos de todo. Felizmente, não é o caso do nosso.
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