Jaime Nogueira Pinto,
Diário de Notícias, 26 de Setembro
de 2016
Ao contrário dos conservadores do establishment que
não se atrevem a pegar nas questões nacionais e a falar aos deplorables,
Trump conseguiu chegar aos homens comuns, em guerra com as elites, que os
abandonaram.
Segunda-feira, 26 de Setembro, pelas 09:00 da noite
(duas da manhã do dia 27, hora de Lisboa), vai dar-se o já chamado «debate do
século»: Hillary Clinton versus Donald Trump. O duelo de 90 minutos vai ser
moderado por Lester Holt, do NBC Nightly News.
Continuidade e ruptura
O centro da campanha eleitoral é a política interna
mas a política externa conta sempre e Hillary procurará levar a conversa para
aí — e daí para a alegada ignorância e inexperiência de Trump e para o facto de
alguns dos mandarins do establishment republicano e conservador da Defesa, dos
Negócios Estrangeiros e da Intelligence o criticarem ao ponto de admitirem
cruzar a linha da lealdade partidária. É o que farão o general Brent Scowcroft,
ex-NSC de George H. Bush, e Richard Armitage. Também Chester Crocker e Eliot
Cohen, sem que tivessem apoiado Clinton, exprimiram já reservas quanto à
capacidade geopolítica de Trump.
A política exterior de Hillary será uma política de
continuidade, na linha do internacionalismo liberal: business as usual em
relação aos seus predecessores — Obama mas também George W. Bush, que, com toda
a família, tem combatido Trump. E os Bush contam na Florida, onde Hillary e
Trump estão empatados.
Mas terá Trump uma política externa além das
invectivas anti-islâmicas e antilatinas? Será Trump apenas um retórico básico,
que ameaça tudo e todos com muros e fronteiras, que combate o livre comércio e
proíbe os muçulmanos de entrarem nos Estados Unidos?
Joshua Mitchell, politólogo de Georgetown, publicou
no Politico Magazine um texto intitulado «Donald Trump does
have ideas — and we’d better pay attention to them».
O regresso da fronteira
Começando por citar Tocqueville — «na América as
ideias são uma espécie de poeira mental» —, Mitchell enumera os programas
políticos reduzidos a slogans das sucessivas administrações: New Deal
(Roosevelt), Containment (Truman), New Frontier (Kennedy) War on Poverty
(Johnson), Silent Majority (Nixon), Star Wars (Reagan). Para Mitchell, Trump
tem de facto ideias, só que são ideias fora ou contra o sistema: contra a
globalização, as «identidades», a political correctness e o consenso
bipartidário em política externa. Mitchell resume assim o ideário de Trump:
1. As fronteiras e a política de imigração têm
importância.
2. Os interesses nacionais devem passar à
frente dos chamados interesses globais.
3. O empreendedorismo e a descentralização são
essenciais.
4. O discurso politicamente correcto é
hipócrita e irrealista e deve ser repudiado.
Depois da vitória na Convenção republicana, Trump
teve um péssimo mês de Agosto, causado pelos seus desmandos retóricos contra
grupos étnicos, americanos e estrangeiros e pelo seu pronto aproveitamento
pelos media.
Hillary ultrapassou-o, assumindo uma liderança
confortável, entre oito e dez pontos, mas a partir da mudança da equipa de
conselheiros e estrategas, do encontro com o presidente Peña Nieto do México e
de uma maior cautela na comunicação, Trump recuperou: não só no confronto
nacional, onde está colado a Hillary, como, e mais importante, em swing
states, como a Florida, o Ohio e a Carolina do Norte.
Porque é que Trump, apesar de Trump ou pour
cause, conta, e porque é que o seu discurso é eficaz? Primeiro porque as
fronteiras contam para a identidade política, para a soberania e para a
segurança e depois porque a desregulação teve efeitos trágicos na economia e na
sociedade americanas, desertificando cidades e regiões industriais. Trump e
Saunders pegaram no tema e até Clinton passou a anunciar medidas punitivas para
os deslocalizadores e a deixar passar um certo cepticismo quanto aos tratados
projectados de comércio livre.
Da imigração
Os Estados Unidos — e o resto das Américas — foram
feitos por imigrantes, pelas dezenas de milhões de emigrantes europeus que ali
aportaram, entre o fim das guerras napoleónicas e a Grande Guerra de 1914-1918.
Michael Cimino, o realizador de The Deer Hunter e de Heaven’s Gate, defendia
essa teoria — os americanos eram os imigrantes, melhor, os filhos dos
imigrantes. Só que uma coisa foi a chegada às terras grandes e vazias do
continente de famílias de europeus cristãos, trabalhadores, cheios de esperança
e de vontade de vencer; outra, é a imigração de hoje, tantas vezes controlada
por máfias criminosas de passadores e explorada por empresários sem escrúpulos
que alimentam o sistema dos ilegais que lhes baixam os custos do trabalho.
O controlo da imigração não é xenofobia é um
direito do Estado e os imigrantes já não são aquilo que talvez nunca tivessem
sido mas que, ainda assim, ainda era passível de idealização: a bela
fraternidade eslava do Deer Hunter, a caçar veados nas frias manhãs da
Pensilvânia, em vésperas de partir para o Vietname.
Trump argumenta que a elite bipartidária
internacionalista – políticos, banqueiros, jornalistas – redireccionou
interesseiramente as lealdades políticas para uma suposta humanidade ou uma
vaga consciência universal em vez do que para ele devia estar no vértice da
lealdade política: a nação próxima e concreta, a humanidade possível.
Heresia económica
Puxando pelos seus galões (para alguns discutíveis)
de empresário de sucesso, Trump sustenta que uma baixa radical dos impostos
trará de volta à América capital emigrado para as periferias baratas ou
aparcado em paraísos fiscais. Grande parte da sua agenda económico-social
contradiz a ortodoxia do GOP, que preza a liberdade de comércio e as virtudes
da globalização. Ao defender uma economia regulada, que proteja as indústrias e
os empregos americanos na América, Trump sabe que está a incorrer em pecado
mortal; sabe também que reincide nas ofensas graves ao mercado livre quando
propõe a subida dos salários, a segurança social e a assistência médica, embora
com privatização parcial.
Tudo isto lhe valeu a desconfiança de grandes
doadores republicanos, como os irmãos Koch. No fim de Agosto, Hillary tinha
reunido 542 milhões de dólares e Trump 402 milhões.
Mas além da questão nacional, o ponto em que Trump
mais se distingue de Hillary é na guerra à correcção política. Nesse sentido,
Trump é muitas vezes o inimigo número um de Trump. Não se pode — sobretudo
quando se tem a inimizade de 80% dos media norte-americanos e de 90% dos
internacionais — desqualificar um juiz americano porque é de origem mexicana;
ou falar em proibir de entrar no país um quarto da humanidade (em que se
incluem alguns dos grandes investidores e aliados dos EUA) só porque é
muçulmana.
Embora a correctíssima Hillary não se tenha inibido
de insultar outros muitos milhões de patrícios seus num círculo de
progressistas chiques de Nova Iorque, chamando «deplorables» e
racistas aos partidários de Trump, há que considerar o
desconto de que beneficia entre os comunicadores, sempre benevolentes para com
estes e outros «pecadilhos» da candidata democrata, como as histórias confusas
dos e-mails do State Department e da Fundação Clinton.
De um modo rude, às vezes brutal, às vezes
errático, Trump pegou na outra realidade política. Os Estados Unidos e a Europa
são orientados intelectualmente por um pensamento único, que soube e sabe
apresentar os seus preconceitos ideológicos como princípios nobres e verdades
universais. A Realpolitik que voltou a regular o mundo é tabu
no Ocidente. Daí a revolta das classes médias e trabalhadoras.
O candidato Trump tem ares e modos de spoiled
child, de filho de pai rico, arrogante, extravagante e solipsista. Hillary
é de outro género – uma mulher fria, determinada e ambiciosa, uma Lady Macbeth
que joga todas as cartas, até a feminista. Qualquer um dos dois tem mais
inimigos do que amigos entre os eleitores.
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