domingo, 12 de setembro de 2010

Fogo amigo

António Marques Bessa

O fogo do empobrecimento

Quando os pirómanos vão a tribunal não lhes acontece nada, porque são doentes. A nossa cultura integra uma forte indulgência para com o mal, o que acarreta a impunidade de autênticos malvados. A desculpabilização tornou-se a principal cantata da partitura.

O nosso país todos os Verões assiste, extasiado, à queima de hectares de floresta. A mancha verde é comprimida pelo betão e pelo fogo. Toda a gente sabe que é uma espécie de inevitabilidade neste balançar do fogo e da corrida dos bombeiros, com muita gente humilde a defender o pouco que é seu. E para lá das palavras de repúdio, assiste-se à mesma indiferença dos poderes instalados porque nada é feito para deter este verdadeiro flagelo.

O País já é pobre, mas depois de lhe arderem quilómetros quadrados de floresta qualificada, fica ainda mais pobre. As pessoas dessas zonas que podiam vender madeira e explorar a seiva do pinheiro ficam sem nada e às vezes, dramaticamente, perdem-se vidas, numa inutilidade sem paralelo.

A Federação Russa, a Grécia, às vezes a Itália, debatem-se com o mesmo problema. A Rússia certamente deve ter aprendido a sua lição dura, embora fique com muita floresta ainda. Uma observação mais detalhada das grandes manchas verdes deve seguir-se, bem como inquéritos rigorosos às causas do Inferno que levou milhares de toneladas de madeira. E a Rússia é dos países que sabe lidar rapidamente com as causas.

E que causas

Com a frequência dos fogos em Portugal não há já margem para dúvidas. O calor de 40 graus não provoca uma combustão automática. Têm-se apanhado ocasionalmente alguns "pirómanos" a deitar fogo aos pinhais. Há pessoas que gostam de ver as reportagens na TV e darem-se conta dos efeitos do trabalho que fizeram. Quando os pirómanos vão a tribunal não lhes acontece nada, porque são doentes. A nossa cultura integra uma forte indulgência para com o mal, o que acarreta a impunidade de autênticos malvados. A desculpabilização tornou-se a principal cantata da partitura. São decisões colectivas, planos colectivos, acções de grupo, não há responsável visível. Veja-se ao contrário o que acontece nos Estados Unidos da América: identificou-se a BP e a companhia, um colectivo, teve pagar pelos estragos; os suíços da UBS, uma vez identificados pelo fisco americano, têm que pagar uma soma astronómica ao Tesouro pelas contas de americanos riquíssimos que escondeu. Não há desculpabilização e não há indulgência. Como Max Weber já explicou há muito tempo, existe uma fronteira de mentalidades entre os protestantes e os católicos. Enquanto os primeiros se ocupam a trabalhar conscienciosamente, os segundos reivindicam o direito à preguiça. Enquanto os seus países se vão equilibrando e progredindo, os católicos não os conseguem apanhar. Na verdade, uns têm uma ética do trabalho e da responsabilidade e outros ou têm a tal ética republicana, que não é a da República Romana donde copiaram o nome, ou limitam-se a existir à custa de golpes.

É triste

É triste saber que os fogos que destroem o País têm origem criminosa ou são provocados pelo desleixo do povo. Mas o povo nunca foi ensinado, como em França, a fazer uma gestão científica da mata, porque nem o Estado faz essa gestão da sua mata.

De seguida, há a considerar a fragmentação brutal da propriedade da mata. Com propriedades tão pequeninas, que pode fazer o dono do pinhal? Essa mata serve-lhe enquanto lavrador para colher madeira para emendas na casa, fazer barracões, ir buscar mato para a cama dos bichos que tem, ir colher pinhas e agulhas para acender a lareira e ter um Inverno mais seguro.

Este retrato não é imaginário. Eu próprio verifiquei esta conexão à mata, que é a predominante. Os grandes proprietários têm vendido porque ou vivem em Paris ou em outro lado e não estão para perder milhares de hectares por causa de um pirómano ou uma desatenção de um domingueiro assador de sardinhas.

É triste que as coisas sejam assim. Mas o que salta à vista é a necessidade de uma reforma profunda na propriedade da mata, com emparcelamentos forçados, para o bem de todos. Educação para a exploração dos recursos florestais. Leis mais incisivas e duras para os praticantes do desporto do fogo. Evitar que se suceda nas montanhas mais uma geração de analfabetos funcionais e de pessoas que vivem na margem do autoconsumo. Educação rural, povoamento interno, reforma da estrutura fundiária. Se se fez isso nos campos do Mondego para o arroz e o milho, porque é que se tem evitado fazer uma coisa inadiável que a França pode ensinar? Creio que a resposta está dada: criam-se muitos inimigos ao mexer na terra. É melhor deixar arder tudo.



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