quinta-feira, 16 de setembro de 2010

O governante

João Duque, Económico, 9 de Setembro de 2010

Li este Verão o livro de Joaquim de Almeida A Governanta, uma biografia de D. Maria “a companheira de Salazar”.

O livro é uma excelente obra para os amantes da história de Portugal contemporâneo e deveria ser livro de leitura obrigatória para os governantes e gestores públicos.

O livro é de facto uma preciosidade informativa sobre uma vida, sobre uma época, centrado numa personagem periférica e próxima de Salazar, mas no meu ponto de vista, um livro sobre o regime e sobre uma forma de ver a governação do país dessa época.

O livro dá-nos muita informação de como Salazar tratava o bem público e o discernia do privado e neste aspecto, não tenho dúvidas que deveria ser lido e reflectido por todos os que nos governam ou que tenham poderes de gestão sobre bens públicos.

Também já anteriormente tinha lido o livro de Fernando Dacosta "Máscaras de Salazar" e já nessa altura tinha ficado com a mesma impressão: se Salazar fosse vivo seria hoje abundantemente convidado a palestrar em cursos de organização e gestão pública e até mesmo em programas de ética... Senão vejamos.

Quem é que hoje imagina poder dividir as contas (contadores de electricidade e de telefone diferentes) entre o piso de rés-do-chão e 1º andar da moradia de residência oficial do primeiro-ministro, para que as contas do rés-do-chão (área de trabalho) fossem pagas pelo Estado e as contas do 1º andar (área pessoal) fossem pagas pelo ordenado do próprio? E o mesmo fazendo com as contas da água e até do combustível?

Quem é que hoje imagina que o primeiro-ministro possa mandar comprar, pagando do seu próprio bolso, um serviço de loiça e um faqueiro para se servir no seu dia-a-dia privado na residência oficial, e outros conjuntos paralelos, pagos pelo erário público, exclusivamente dedicados ao uso em refeições oficiais?

Quem é que hoje imagina que se possa retirar um talhão ao jardim do palácio de São Bento para aí se criar uma pequena horta que alimentaria a cozinha da Presidência, reduzindo os encargos com o seu sustento?

Quem é que hoje imagina que se possa retirar um talhão ao jardim ao mesmo palácio para aí se construir um galinheiro que não só alimentava com patos, coelhos e galinhas (e ovos) a cozinha da Presidência, como permitia ainda a venda destes produtos, se excedentários, ao Hotel Aviz, e assim reduzir o custo de manutenção da Presidência?

Quem é que imagina que o frigorífico da residência oficial possa ser pago com o dinheiro do próprio governante porque o considera ao seu uso pessoal?

A gestão pública não exige apenas o cumprimento de regras que se querem apertadas de controlo, transparência, rigor e competência. Exige uma primeira relação escrupulosa e distante com o que não é nosso, desde a viatura de serviço, às viagens e aos fins a que se destinam, ao telefone ou a qualquer outro tipo de equipamento sendo de usar em serviço quando se está, de facto, de serviço.

Sei que hoje é dificilmente imaginável qualquer daquelas situações, mas dão que pensar...





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