João J.
Brandão Ferreira
«O
‘desenrascanço’ português não é mais do que
a
arte da improvisação elevada a ciência».
Do
autor
Sob a forma
de colóquios, seminários, painéis, etc., têm-se multiplicado, nos últimos 15-20
anos, as sessões públicas onde se procura debater as derradeiras campanhas
ultramarinas (1954-1974), em que todo o povo português participou, com especial
empenho das FAs.
É sobretudo
sobre a acção destas que têm versado a maioria das iniciativas realizadas,
cabendo à Instituição Militar ou a órgãos relacionados com a Defesa e
Segurança, a parte de leão na sua organização e execução.
O objectivo tem sido, em termos gerais, o de deixar testemunhos que permitam a futura elaboração da História daqueles conflitos e a passagem de testemunho às novas gerações. É um objectivo louvável, a todos os títulos.
Estas iniciativas
surgiram tardiamente. Digamos que, com 20 anos de atraso.
As razões são sobretudo políticas e ideológicas.
De uma
situação anterior a 1974, em que era muito difícil, fora dos órgãos competentes
do Estado, discutir a situação vivida pela Nação, passou-se para outra, dois
anos depois, em que se impôs uma ditadura de pensamento que abominava tudo o
que tinha ocorrido no passado recente e, até, muitas das coisas do passado
remoto.
Os combatentes foram, então, relegados para a prateleira da ignomínia e do esquecimento e a resposta à guerra que nos impuseram, foi carimbada como injusta e iníqua. E tiveram a infâmia de escrever isto mesmo, nos livros de História!
A lavagem ao
cérebro, o condicionamento psicológico e a cobardia moral foi de tal ordem, que
só há poucos anos se começaram a levantar as barreira à auto – censura e a
haver direito ao contraditório.
O caminho que já se fez ainda está muito aquém, porém, daquele que falta fazer.
O que se
passou a fazer nos últimos 15/20 anos, não obedeceu a nenhum plano – salvo
raras excepções de que se realça o trabalho da Comissão para o Estudo das
Campanhas de África – surgiu de iniciativas singulares que ficam ao arbítrio
das personalidades que lideram, no momento, diferentes órgãos/instituições.[1]
Daí que, até hoje, os resultados sejam apenas parcelares, repetitivos, aleatórios e descoordenados. Não estou a dizer que sejam medíocres, sem valor ou mal-intencionados; tudo o que foi feito é importante e tem merecimento. Estou apenas a tentar chamar a atenção para a falta de eficiência, dispersão de esforços e falta de sistematização, que coarta a existência de obras de referência e a elaboração de sínteses de conhecimento que permitam o estabelecimento de doutrina e consolidem ensinamentos.
Vamos tentar
ilustrar o ponto com o ocorrido no último seminário ocorrido no Instituto de
Estudos Superiores Militares (IESM), em 20 de Junho, sobre a “Força Aérea em
África, 1959-1975”. Este seminário foi antecedido por um outro, em Abril,
referente à acção das FAs, em termos gerais, no citado conflito, a que se
seguirão mais duas sessões dedicadas, respectivamente, à Marinha e à FA.
Aquele seminário durou um dia e tratou de operações aéreas, construção de aeródromos, acção dos paraquedistas, transporte aéreo, etc., e algumas conclusões. Ora um dia não dá para tratar sequer, um dos sub - temas, quanto mais a actuação de toda a FA num período de 16 anos!
As conclusões
serão assim, e inevitavelmente, parcelares e pontuais e, se colocarmos a
questão do que se vai fazer com elas creio que ninguém, em boa verdade, saberá
responder.
Havendo algum dinheiro e vontade, ficarão registadas em publicação própria e arquivadas à espera que outras se lhes juntem, fruto de iniciativas futuras. Do mesmo modo que as de agora se vão justapor às anteriores, sem nunca se confrontarem…
Depois
nota-se uma coisa assaz interessante: para além de haver uns “habitués”que
circulam por estas iniciativas, a assistência tende a dividir-se pelos eventos
que menos lhes deveriam interessar. Explicitando, cerca de 95% dos ouvintes do
seminário em apreço, eram da FA, ou seja é uma assistência que, à partida, está
por dentro (ou devia estar), dos assuntos que vão ouvir. Supostamente teriam
pouco a aprender.
Quem poderia ter algo a aprender seriam os militares da Armada e do Exército e, naturalmente, os civis (nomeadamente os ligados à Defesa), mas estes primaram pela ausência.
Isto tem
sido recorrente.
Ora o desconhecimento que os Ramos têm da acção, uns dos outros é de grande infelicidade pois está na origem de muitos problemas chamados “corporativos”, desentendimentos e preconceitos. Ninguém, aliás, pode amar o que desconhece…
Do mesmo
modo, quando a maioria dos oradores são conotados com uma determinada visão da
guerra, logo tal afasta os que não se revêm nessa visão e vice-versa.
Ou seja
existem, neste âmbito como noutros, um conjunto de “trincheiras” que devem ser
desmontadas.
Noutra
perspectiva, ao lado de temas que têm sido muito debatidos – caso das
operações, por ex. – outros existem que quase nunca foram aflorados, como é o
caso do serviço de informações, a assistência sanitária e o serviço postal
militar.
E estamos apenas a falar do âmbito militar, já que tudo aquilo que envolveu e condicionou as operações militares, raramente tem sido objecto de estudo e debate mesmo no campo das universidades e instituições civis).
Ora tendo a
ofensiva contra a Nação Portuguesa sido global e global a sua resposta, os
demais âmbitos têm que ser todos estudados e integrados, sob pena de jamais
percebermos o que verdadeiramente se passou e de se poder ter uma visão de
conjunto do maior conflito que afectou Portugal em todo o século XX.
E estes âmbitos são, basicamente, o Político/Estratégico; o Diplomático; o Económico/Financeiro; Social e Psicológico, além do óbvio âmbito militar.
Entre todos
adquire especial importância o “psicológico” – que foi o que deitou tudo a
perder – dado que percorre transversalmente todos os outros, sendo que, no caso
em apreço, assume extraordinária relevância a questão da “Justiça da Guerra” e
do Direito na, e em fazer a guerra.
Esta questão representa o Alfa e o Ómega de tudo e sem as contas estarem feitas neste particular, nada estará devidamente aferido e concluído.
Desta
questão, todavia, não há quem não fuja dela como o diabo da Cruz.
E não há “desenrascanço” que nos salve.
[1]
Estranhamente (ou talvez não), nunca se constituiu nenhuma comissão para
analisar e documentar o conflito que levou à perda do Estado da Índia, apesar
de este ser anterior às campanhas de África…
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