Paulo Tunhas, Observador 2015.03.19
As crenças absurdas afectam, ou ameaçam afectar, as
nossas vidas, como as de Vasco Lourenço e Varoufakis, e aí é que a porca torce
o rabo. Sobretudo quando as querem impor contra a vontade da maioria.
O socialismo, à boa e velha maneira, continua,
apesar de tudo, na moda em vários lugares do mundo. E o que não faltam são
teóricos esclarecidos para nos demonstrarem a sua urgência. Um deles é Vasco
Lourenço, que sonha com uma aliança do PS com o PC, o Bloco de Esquerda e
outros partidos fora do «arco da governação», que nos conduza a uma libertação
da «mesquinhez» da actual política europeia, como confessou ao Público.
«Um estrondoso murro na mesa», como ele diz, é o que é preciso.
Maçonaria utópica ou maçonaria «cientítica» (calculista)? |
Estas declarações foram feitas por ocasião de um
congresso na Gulbenkian, significativamente intitulado «Congresso da Cidadania.
Ruptura e Utopia para a Próxima Revolução Democrática». Um tão vasto projecto
requeria certamente um tão longo título. A revolução precisa de uma rampa de
lançamento com a extensão devida, e é até duvidoso que a coisa possa ir para a
frente sem um seminário permanente consagrado ao tema. De qualquer maneira,
faz-se o que se pode, e Vasco Lourenço, presidente da «Associação 25 de Abril»,
não se poupou a esforços no texto de apresentação do congresso. Não faltam
considerações sobre Portugal se ter tornado um «Estado vassalo» da burocracia
de Bruxelas nem sobre a óbvia solução para o «estado a que chegámos»: «uma
prática correcta dos valores de Abril» (para esclarecimentos detalhados sobre a
«prática correcta», destinados a evitar riscos de práticas incorrectas de
valores, contactar o presidente da Associação).
A mim, o que me despertou curiosidade na prosa foi,
confesso, a «utopia». No texto de Vasco Lourenço, a palavra aparece, além do
título, em duas passagens. Na primeira, a utopia – «uma nova utopia» – viria
dar aos portugueses «razões para a esperança num futuro melhor». Na segunda,
oferece-se, na medida do possível, um conteúdo concreto para a utopia: «a
construção da sociedade de Abril». Desconto o facto de, na prosa do autor, a
tal «nova utopia» ser, afinal, uma utopia velha. O que é curioso é o próprio
recurso à utopia. É como se esta exigência de socialismo (a palavra não
aparece, é verdade, no texto) adoptasse (sem grande consciência disso, quase de
certeza) um perfume pré-marxista capaz de comover as multidões e, ao mesmo
tempo, permitindo uma oportuna vagueza sobre o que viria depois do «estrondoso
murro na mesa». Aposto que não viria nada de muito bom, até porque, bem vistas
as coisas, a mesa somos nós, os cidadãos eleitores, não suficientemente
esclarecidos em matéria de práticas correctas.
Mas não é muito crível que os desejos utópicos de
Vasco Lourenço se venham a realizar a breve prazo. Afinal de tudo, Portugal é
uma democracia. Ele que siga o exemplo de um dos mais divertidos utopistas de
todos os tempos, Charles Fourier, que esperou pontualmente, durante dez anos,
ao meio-dia, nos jardins do Palais Royal, o benemérito que lhe financiaria a
construção da Harmonia. Os jardins da Gulbenkian não são tão lindos como o
Palais Royal, mas são lindos à mesma e servem muito bem. Pode ser que tenha
sorte. Ou então, se as suas finanças andarem particularmente boas, que faça
como Robert Owen, que emprestava quantidades extraordinárias de dinheiro ao
Duque de Kent (o pai da futura Rainha Vitória) na esperança de que este o
pudesse ajudar a transformar a sociedade. Mas com prudência, que as pessoas
nesta matéria não são de confiança. Se lhe faltar energia para qualquer destas
duas soluções, que poupariam em princípio um estrondoso murro na cabeça dos
portugueses, há estímulos possíveis. O jovem Henri de Saint-Simon, por
exemplo, fazia-se acordar diariamente pelo seu criado de quarto ao som de «Levante-se,
monsieur le Comte! Lembre-se que tem grandes feitos a realizar!». Porque não
tentar algo assim?
Quem não precisa desses estímulos, porque a si
próprio os administra em doses abundantes, é o nosso já imprescindível Yanis
Varoufakis, que além de tudo beneficia do «amor» do estremoso Jean-Claude
Juncker (porque carga d'água nos caiu este homem em cima? – razão tinha
Cameron). Mas aqui não se trata de um retorno a um perfume utópico
pré-marxista. Trata-se antes de uma espécie de ciência pós-marxista. Num texto
que o Guardian publicou, e que reproduz uma conferência feita
em Zagreb em 2013, Varoufakis expõe as razões pelas quais se tornou um
«marxista errático». O epíteto «errático» não merece grande curiosidade, a não
ser pela fantástica auto-condescendência e garridice narcísica que revela, até
porque em muito pouco tempo nos habituamos a ouvi-lo dizer uma coisa e o seu
contrário, a pedir desculpa pelo que fez e a declarar que o que fez não o fez.
Mas a história das suas ideias em relação a Marx é explicada com um detalhe que
mostra o seu desprezo pelo sábio conselho de alguém (esqueci quem) que notava
que o género «História das minhas ideias filosóficas» deveria ser reservado a
quem tivesse tido ideias filosóficas.
Os pontos em que Varoufakis discorda de Marx são um
lugar-comum da crítica ao marxismo desde tempos imemoriais e os aspectos em que
diz ser-lhe fiel são erros ainda mais antigos. A única novidade – relativa, de
resto – consiste na adopção de um tom desenvolto e pretensamente cândido que
visa antes de mais mostrar as altas dimensões da sua inteligência e que é em
parte copiado de Zizek. Por exemplo, Varoufakis não se limita a criticar, numa
coisa ou noutra, Marx. Tem de declarar que os erros de Marx o tornam
«terrivelmente furioso» com o velho Karl. Se existisse uma máquina do tempo e
Varoufakis fosse transportado para a biblioteca do British Museum por volta de
1850, Marx de certeza que era obrigado a fugir. E não só por medo, mas também
por não conseguir trabalhar, com o outro sempre a falar.
Um outro exemplo da garridice do nosso autor.
Varoufakis declara que bem gostaria de avançar com um programa radical: «abolir
o capitalismo europeu, desmantelar a horrível eurozona e sabotar a União
Europeia dos cartéis e dos banqueiros da bancarrota». Mas, desejando do fundo
do coração o crepúsculo do capitalismo, não quer avançar imediatamente nessa
direcção. Porquê? Porque se encontrava em Inglaterra no tempo da ascensão de
Thatcher ao poder e, à época, acreditou na veracidade da célebre frase de
Lenine: «As coisas têm de piorar antes de melhorarem». Thatcher provocaria uma
reacção tão violenta que as forças do Bem rapidamente tomariam o controle da
situação. E o que viu foi que, ao invés, a esquerda, em vez de se mobilizar
eficazmente contra Thatcher, perdeu de forma durável o combate político e
ideológico. Por isso, com medo que um programa radical esbarrasse com a vontade
da maioria, anestesiada pelo neoliberalismo, e suscitasse mesmo um avanço da
extrema-direita, o autodesignado «marxista errático» decidiu que a sua tarefa
seria doravante a de «salvar o capitalismo europeu de si mesmo» e de
estabilizar a Europa.
Em suma: mais inteligente do que todos, Varoufakis
pretende tornar-se o campeão daquilo que pretende destruir. Será necessário,
para «estabilizar a Europa hoje», «forjar alianças com as forças
reaccionárias». Depois, mais tarde do que cedo, não se percebe muito bem como,
virá a revolução. Esta demora é obviamente vivida com a grande «tristeza de
abandonar qualquer esperança de substituir o capitalismo no tempo da minha
vida».
Receio que a grande ambição de Varoufakis, a de
«estabilizar a Europa» através da «aliança com as forças reaccionárias» não
esteja a ser muito bem sucedida. Seria Lenine, afinal, a ter razão? Mais cedo
ou mais tarde teremos certamente, pela sua pena, alguns esclarecimentos quanto
a esta questão. Entretanto, num mundo ideal, seria bom vê-lo num banquinho dos
jardins da Gulbenkian ao lado de Vasco Lourenço.
Com a idade, ganha-se respeito para com as coisas
em que os outros acreditam e nós não, desde não afectem as nossas vidas. Um
dia, há já vários anos, no metro do aeroporto até casa, fiquei fascinado por um
casal de velhotes, com ar de camponeses dos arredores do Porto, que liam entretidamente
uma revista dedicada às telenovelas que passavam na televisão. Falavam dos
personagens como se fossem pessoas reais, como eles próprios, dotadas de uma
existência e de uma autenticidade indiscutíveis. De uns gostavam, a outros
odiavam. E uma vez, no quiosque onde compro cigarros e jornais, a propósito de
uma actriz portuguesa que costumava aparecer muito nas capas das revistas da
especialidade, alternando quase semanalmente, para óbvios propósitos
publicitários, uma felicidade amorosa absoluta e tragédias igualmente amorosas
de fazer chorar as pedrinhas da calçada, querendo fazer conversa engraçada,
disse ao senhor: «Ela esta semana está feliz». Resposta, muito séria: «E bem
merece». Juro que poucas vezes me senti tão ofensivamente estúpido.
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