Nuno Fradique Vieira, Público, 27 de Março de 2015
Para a dra. Maria Alice não existia «um erro sem
importância» — um erro era um erro e a dra. Maria Alice não tolerava erros.
1. A dra. Maria Alice era o terror do meu colégio. Quando
a dra. Maria Alice assomava ao fundo do corredor, que o vagar do seu passo
fazia interminável, a algazarra tornava-se murmúrio, o rebuliço serenidade
fingida e ia-se a esperança de que aquele fosse enfim o dia da sua primeira
«falta».
Na ponta oposta do corredor ficava a sala 1. A dra.
Maria Alice dava aulas na sala 1 – mais ninguém dava aulas na sala 1
e ela não dava aulas em nenhuma outra. A sala 1 era «a sala da dra. Maria
Alice» e a dra. Maria Alice era «a professora de Português».
A dra. Maria Alice era severa e carrancuda. As únicas
paixões que lhe conheci foram o ensino, o rigor e a Língua Portuguesa. Para a
dra. Maria Alice não existia «um erro sem importância» – um erro era
um erro e a dra. Maria Alice não tolerava erros. Quando algum se apresentava, a
punição imediata fazia com que não tornasse. Mas os bons resultados eram
premiados com presentinhos – livros, claro – pagos pelo bolso
próprio. Ainda guardo um.
Nos «pontos», a dra. Maria Alice usava uma escala de
classificações peculiar que incluía «Óptimo», «Péssimo» e «Recuso-me a ler
isto». Nas aulas, a dra. Maria Alice não se limitava a dizer «é
assim» – a Dra. Maria Alice explicava porque é que era assim,
ensinando-nos a génese de cada palavra a partir da sua raiz latina ou grega; e
mais tarde isso facilitou sobremaneira a nossa aprendizagem de outras
línguas. Ensinou-nos, também, que «parvo» vem do Latim, «Parvus, Parva, Parvum»,
e significa – quem o diria! – pequeno. «Pequeno de
espírito», costumava ela repetir pensando certamente em alguém, «pequeno de
espírito».
A dra. Maria Alice não tinha idade; acho que foi sempre
velha. Era velha quando me tornei seu aluno, assim ficou enquanto minha
professora e velha permaneceu até morrer. A dra. Maria Alice nunca se casou e,
como Brás Cubas, não teve filhos, não transmitiu a nenhuma criatura o legado da
nossa miséria. O que a dra. Maria Alice alcançou foi ensinar Português correcto
a incontáveis gerações. Essa foi a sua herança.
2. Em prol da memória da dra. Maria Alice, agradeço ao
PÚBLICO por não enveredar pelo caminho do «menor esforço» que está a conduzir à
destruição da Língua Portuguesa e ao aumento da iliteracia – criando
situações deploráveis onde escritores consagrados por um Nobel celebram «patos»
com o diabo e sinais de trânsito proíbem a passagem «exeto» para (ironia das
ironias) acesso à Faculdade de Letras e à Faculdade de Ciências.
Escusando-se a adoptar o «Acordo Ortográfico» de 1990,
que não é «Acordo» (porque
um acordo pressupõe a concordância de todas as partes) e não é «Ortográfico» (porque a palavra grega «orthós»,
como a dra. Maria Alice nos ensinou, significa «direito» – e este
pseudo-acordo é uma ode à tortuosidade, à incoerência e à pequenez de
espírito), o PÚBLICO está a preservar o legado de todos os professores e
professoras que foram como a minha hoje querida dra. Maria Alice.
Bem hajam!
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