quinta-feira, 23 de abril de 2015


Escrevo como aprendi,

porque aprendi com quem sabia


Nuno Fradique Vieira, Público, 27 de Março de 2015

Para a dra. Maria Alice não existia «um erro sem importância» — um erro era um erro e a dra. Maria Alice não tolerava erros.

1. A dra. Maria Alice era o terror do meu colégio. Quando a dra. Maria Alice assomava ao fundo do corredor, que o vagar do seu passo fazia interminável, a algazarra tornava-se murmúrio, o rebuliço serenidade fingida e ia-se a esperança de que aquele fosse enfim o dia da sua primeira «falta».

Na ponta oposta do corredor ficava a sala 1. A dra. Maria Alice dava aulas na sala 1 – mais ninguém dava aulas na sala 1 e ela não dava aulas em nenhuma outra. A sala 1 era «a sala da dra. Maria Alice» e a dra. Maria Alice era «a professora de Português».

A dra. Maria Alice era severa e carrancuda. As únicas paixões que lhe conheci foram o ensino, o rigor e a Língua Portuguesa. Para a dra. Maria Alice não existia «um erro sem importância» – um erro era um erro e a dra. Maria Alice não tolerava erros. Quando algum se apresentava, a punição imediata fazia com que não tornasse. Mas os bons resultados eram premiados com presentinhos – livros, claro – pagos pelo bolso próprio. Ainda guardo um.

Nos «pontos», a dra. Maria Alice usava uma escala de classificações peculiar que incluía «Óptimo», «Péssimo» e «Recuso-me a ler isto». Nas aulas, a dra. Maria Alice não se limitava a dizer «é assim» – a Dra. Maria Alice explicava porque é que era assim, ensinando-nos a génese de cada palavra a partir da sua raiz latina ou grega; e mais tarde isso facilitou sobremaneira a nossa aprendizagem de outras línguas. Ensinou-nos, também, que «parvo» vem do Latim, «ParvusParvaParvum», e significa – quem o diria! – pequeno. «Pequeno de espírito», costumava ela repetir pensando certamente em alguém, «pequeno de espírito».

A dra. Maria Alice não tinha idade; acho que foi sempre velha. Era velha quando me tornei seu aluno, assim ficou enquanto minha professora e velha permaneceu até morrer. A dra. Maria Alice nunca se casou e, como Brás Cubas, não teve filhos, não transmitiu a nenhuma criatura o legado da nossa miséria. O que a dra. Maria Alice alcançou foi ensinar Português correcto a incontáveis gerações. Essa foi a sua herança.

2. Em prol da memória da dra. Maria Alice, agradeço ao PÚBLICO por não enveredar pelo caminho do «menor esforço» que está a conduzir à destruição da Língua Portuguesa e ao aumento da iliteracia – criando situações deploráveis onde escritores consagrados por um Nobel celebram «patos» com o diabo e sinais de trânsito proíbem a passagem «exeto» para (ironia das ironias) acesso à Faculdade de Letras e à Faculdade de Ciências.


Escusando-se a adoptar o «Acordo Ortográfico» de 1990, que não é «Acordo» (porque um acordo pressupõe a concordância de todas as partes) e não é «Ortográfico» (porque a palavra grega «orthós», como a dra. Maria Alice nos ensinou, significa «direito» – e este pseudo-acordo é uma ode à tortuosidade, à incoerência e à pequenez de espírito), o PÚBLICO está a preservar o legado de todos os professores e professoras que foram como a minha hoje querida dra. Maria Alice.

Bem hajam!


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