terça-feira, 21 de abril de 2015
País de papel
Helena Matos, Observador, 19 de Abril de 2015
Ou somos capazes de confrontar o país de papel com a realidade ou acabaremos no debate sobre o meu decreto-lei vai mais longe que o teu, para no fim ficarmos ainda mais pobres e noutra crise qualquer.
Dentro de dias teremos as cerimónias do 25 de Abril. Simultaneamente temos a evocação dessa Assembleia Constituinte eleita precisamente há quarenta anos.
O país descobre agora detalhes dessas eleições e histórias desse parlamento que ainda antes de nascer já sofria do pecado original de ser burguês. Não por acaso, aquilo a que nos últimos anos temos chamado contestação é quase invariavelmente o desfile do que resta desse país em que a legitimidade da rua, das assembleias de oficiais, sargentos e praças e dos pactos MFA-partidos era vista como moralmente superior à do parlamento: militares agora como então incapazes de produzir um discurso coerente antecipando golpes de estado (em 1975 após umas assembleias nocturnas, agora após o almoço, que a idade não perdoa), sindicatos de representatividade mediática inversamente proporcional à sua representatividade laboral funcionando como uma espécie de milícias da esquerda comunista, só que agora com reformados no lugar dos antigos operários fardados (quero acreditar que em alguns casos são os mesmos, mas com mais 40 anos e dando o braço e o abraço aos socialistas), líderes políticos e jornalistas agora como então empolgados com a força revolucionária da rua.
E, claro, muito falar de fome, de Salazar (por sinal morto em 1970 e incapacitado desde 1968), da revolta… enfim o costume como se não tivessem passado 40 anos, não estivesse tudo mais velho, mais gordo e a contar o tempo das performances da indignação até que as televisões partam e consequentemente as corporações do regime possam dar por terminada a encenação da revolta popular.
Mas para lá deste aspecto quase folclórico e invariavelmente cruel das imagens, e independentemente de todas as discussões que se possam ter sobre a Constituição (sim é um programa de governo, sim é de esquerda, sim é frequentemente desrespeitada), o que esteve em causa nesta crise foi o país de papel, esse país que se desenhou decreto a decreto, portaria a portaria, artigo a artigo nesse ano de 1975 e, para sermos justos, nos que se lhe seguiram. É esse um mundo em que não existe qualquer relação entre o que materialmente se promete e os meios existentes. É um mundo onde se legisla unicamente em função do presente e em que, desde as portarias sobre a bolacha Maria («de consumo muito generalizado, em especial pelas classes de menores rendimentos» segundo a Portaria 653/74, de 10 de Outubro que lhe fixou os preços máximos) às questões da propriedade e do trabalho, somos confrontados com o imaginário de um país em que no papel se há-de compensar tudo o que não fomos capazes de fazer.
É um mundo onde qualquer lei é precedida de magníficas peças introdutórias onde, após se desenhar um mundo de trevas herdado do passado, se traça o luminoso resultado que todo aquele articulado vai produzir no imediato. É um país adolescente, em que a culpa é sempre dos outros que estiveram antes, em que daquele momento em diante tudo funcionará simplesmente porque agora são eles os protagonistas.
Paulatinamente o jargão revolucionário foi sendo substituído por aquele linguarejar dos programas, dos eixos dinamizadores, da dimensão solidária, do impacto das políticas de crescimento… mas o imaginário sobre o poder abracadabrante da legislação não só se manteve intocável como até se reforçou pois sempre era uma alternativa civilizada à gritaria da rua.
Até que chegou 2011 e a crise amarrotou o país de papel. Ou melhor ficou desbotado e antigo como as fotografias em Kodacolor que fazíamos há quarenta anos e que agora já não fazemos mas entrevemos como quem folheia um velho álbum em cada acórdão do Tribunal Constitucional e em cada declaração anti-austeridade. Quatro décadas depois, o país das promessas no papel começou a esboroar-se não porque tenhamos deixado de ser socialistas (não deixámos) mas tão só porque se percebeu que os únicos a pagar o que se escreve no papel somos nós.
E isso faz toda a diferença. Uma diferença bem mais profunda que qualquer revisão constitucional. O país de papel promete-nos a riqueza e a perfeição há quarenta anos. (Que nos prometa tudo isso sob o sistema socialista é apenas um detalhe dessa ficção pois o socialismo acabou quando acabou o dinheiro e o estatismo mágico ocupou o lugar outrora reservado à luta de classes.) Mas o que se torna evidente a cada crise é que ou somos capazes de confrontar o país de papel com a realidade, questionando o âmbito das medidas, a sua sustentabilidade, os seus efeitos ou acabaremos na discussão sobre o meu decreto-lei vai mais longe que o teu. Que é o mesmo que dizer que cairemos ainda mais pobres numa outra crise mas rodeados de decretos, leis, portarias, disposições e programas onde se enumeram objectivos ainda mais perfeitos.
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