Alberto Gonçalves,
Diário de Notícias, 6 de Setembro de 2015
Talvez não fazer nada, hoje, seja um dia meio
caminho andado para uma morte precoce
Quando redobraram as notícias sobre multidões que
fogem para a Grécia e para a Europa em geral, pensei tratar-se de uma falha –
nas notícias ou no GPS das multidões. Afinal, estivemos meses a aprender que na
Grécia, e na Europa em geral, se vivia uma tragédia humanitária nunca vista.
Contra todas as expectativas, havia tragédias assaz maiores já ali ao lado. E
os que lamentavam a devastadora austeridade que nos caiu em cima são os mesmos
que agora exigem a partilha da nossa ofensiva abundância com os desafortunados
do Médio Oriente e de onde calha. De súbito, a Europa tornou-se rica e repleta
de empregos, alojamentos decentes, mesas fartas, privilégios sem fim. É o lado
bom da crise dos refugiados.
O lado mau é que os corpos dos refugiados, vivos ou
mortos, continuam a dar à costa. Vale que a reacção dos europeus se revela de
fulgurante utilidade: correr para o Facebook a partilhar a fotografia do
cadáver de uma criança estendido na praia e a criticar a passividade da Europa.
Ou a indiferença dos governos. Ou a desumanidade de um destinatário genérico
que naturalmente exclui o próprio – e heróico – indignado em causa. Parece um
concurso para apurar qual é o cidadão mais piedoso.
Por falta de candidatos, não é de certeza um
concurso para apurar qual o cidadão que abriria as portas de casa ao maior
número de refugiados. Descontadas as «dezenas» de voluntários de que falam as
notícias, não vi muitas almas sensíveis passarem da sensibilidade à prática e
afirmarem-se disponíveis para albergar, por um período transitório, dois sírios
ou quatro curdos no quarto das traseiras. Possivelmente os refugiados
perturbariam o sossego do lar, essencial para se alinhavar no Facebook
manifestos de extrema preocupação com o destino dos refugiados. Esta atitude
traduz a típica bravura moral de quem subscreve petições pelos pobres e não se
digna olhar o mendigo que o interpela na rua. Ou de quem chora os «cortes» no
SNS e não visita o amigo doente. Ou de quem protesta as touradas e não abriga
um cão vadio. O sentimentalismo sem compromisso preza a higiene. E é, desculpem
lá, uma treta.
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