Maria de Fátima Bonifácio, Observador, 11 de Outubro de 2015
«Costistas» no PS são todos aqueles que se servem
de António Costa para que usurpe o poder contra o eleitorado e lhes devolva a
«importância», os «lugares», as prebendas e o acesso ao «spoils
system».
Parto para a análise da intrincadíssima situação em
que o País mergulhou, pela mão traiçoeira de Costa, de quatro dados que ou têm
sido omitidos ou pouco valorizados. São, para mim, dados essenciais e
decisivos. Essenciais significa essenciais. Decisivos significa que
determinaram tudo até agora e continuarão a determinar no futuro. Apenas não
sei qual é o limite temporal deste futuro, nem qual será o seu desfecho. Esses
dados são:
1.º Costa é um homem absolutamente desesperado.
2.º Costa já não tem nada, mas mesmo nada de nada a
perder.
3.º Tudo o que não seja chegar a primeiro-ministro
não basta para o salvar.
4.º Costa não tem carácter, não é homem de palavra,
não olha a meios.
O desespero é mau conselheiro
em todas as circunstâncias. No caso de Costa, em que o desespero ainda por cima
se conjuga com o vexame pessoal, a primeiríssima prioridade do ex-Messias é
salvar a sua pele, custe o que custar, doa a quem doer, pague quem pagar. País,
partido, eleitores e simpatizantes foram banidos do perímetro das suas
preocupações, no interior do qual ele esbraveja como um náufrago para se
salvar. Está disposto a tudo, a renegar tudo, a arrasar tudo, desde que ele se
erga dos escombros – e escombros já há – e possa anunciar: venci todos, ganhei
tudo! Da plateia do seu palco imaginário, o PCP e o Bloco soltarão uma sonora
gargalhada. O triunfo anunciado por Costa repousa por inteiro nas mãos deles.
No momento propício e oportuno para cada um destes dois adversários entre si,
cada um deles lhe puxará o tapete para que todos possam ver que «o rei vai nu».
Costa já não tem nada a perder. Jogou tudo, apostou
tudo naquele fatídico dia em que escarneceu da vitória «poucochinha» por que
Seguro ganhara as europeias à Coligação. Ficou obrigatoriamente comprometido
com o imperativo irrevogável de lhe contrapor um triunfo esmagador nas
legislativas de 2015. Durante um ano andou levado em ombros, empunhando a taça
dos vencedores, muito antes de ter vencido e de a batalha começar. Perdeu
abjectamente. A muito ténue esperança que lhe restava (ou já nem isso?) a
poucos dias do 4 de Outubro transmutou-se num ápice numa tormenta. O vexame era
insuportável. De uma penada, perdia um curriculum de décadas, o sonho de uma
vida, um presente triunfal, e diante de si abria-se um futuro vazio. É formado
em Direito, mas não é jurista, e teria de recomeçar a advocacia por um segundo
estágio. Não exerce profissão para que se possa virar. Aos cinquenta e quatro
anos já não se pode começar nada. Sem um passado sobre o qual se continue a
construir para a frente, o resto da vida não passará de um frustrante remedeio.
Ou seja, não é vida. A solução para este desastre pessoal surgiu rápida: não
vencera as eleições, mas ainda podia vencer o eleitorado.
Nos dias que se seguiram ao tétrico veredicto das
urnas, Costa entrou na sua, muito dele, «espiral labiríntica». Em abono da
verdade, já antes dera sinais: anunciara que chumbaria qualquer Orçamento de
Estado que a Coligação apresentasse, no caso, enunciado como mera hipótese
académica, de o «seu» PS não vencer com a maioria absoluta que diariamente
implorava aos portugueses. Na noite televisiva, Costa apresentou-se amarelado e
com ar grave. Declarou que não faria «coligações negativas», das que servem só
para bota-abaixo. Mas não tardou a ser ele mesmo: com sorriso aberto e ar
galhofeiro, garantiu à audiência que não se demitiria… Percebeu-se que se
extinguira nele qualquer vestígio, ténue ou remoto, da mais elementar
dignidade. E logo a partir de 5 de Outubro percebeu-se também, à medida que
muitos socialistas começavam a rosnar, que em seu entender havia uma única
coisa que o poderia ainda salvar: chegar, efectivamente, a primeiro-ministro de
Portugal. Tudo o que fosse um milímetro menos disto não bastava, não dava para
as necessidades (já direi quais eram). Tornar-se o mero líder de uma bancada
comprometida com um «entendimento» com o governo Passos Coelho/Paulo Portas?
Nem pensar.
Vamos então pôr mãos à obra e vencer o eleitorado.
Um político honrado não faz uma coisa tão feia? Mas Costa já fizera coisas
feíssimas! Como acontece com qualquer droga, o pior é começar: o vício
entranha-se e naturaliza-se imediatamente. Em Fevereiro de 2013 assinara com
Seguro o Documento de Coimbra, «Portugal Primeiro», para o qual disse que tinha
contribuído e no qual também disse que se revia. Deu «os parabéns» a Seguro
pelo «entendimento» a que se chegara e desistiu da sua candidatura a
secretário-geral. Este documento de orientação estratégica, assinado por Costa
e Seguro, foi aprovado pela Comissão Política do PS e serviria de base à moção
de estratégia aprovada no Congresso do PS de 26-28 de Abril. Costa discursou:
«Estamos aqui juntos, juntos somos fortes, juntos somos imbatíveis, juntos
venceremos tudo: autárquicas, europeias e legislativas.»
Oito meses depois, em Janeiro de 2014, Costa rasga
o Documento de Coimbra assinado por si, renuncia ao mandato de Presidente da
CML que jurara cumprir até ao fim. E o resto já toda a gente sabe: ganhou por
margem albanesa as primárias e defenestrou Seguro do Rato. Calçou os patins e
durante algum tempo encontrou piso liso e desembaraçado. Ao primeiro teste à
sua envergadura, falhou logo. António Nóvoa saiu-lhe ao caminho com muita
poesia, candura e total abertura: outro homem disposto a tudo para chegar a
Belém, com poucos escrúpulos (não sabia se era crente, nem se gostava mais do
PS ou do PC), muitíssima ambição disfarçada de modéstia, e completa abertura:
venha um governo de esquerda, acabe-se com esse aberrante «arco da governação».
Problema: Nóvoa dividia o PS. Solução: um dia sim, outro dia não. Nóvoa ficou a
cozer em lume brando para o que desse e viesse. E ainda hoje não se fartou de
servir de roda sobresselente; outro homem de carácter.
Costa contratou Centeno para lhe dar números que
ele não percebia. Who cares? Tinha números, tratava as coisas a
sério. O generoso programa assente em tão claros números era sólido. Provavam
matematicamente que a austeridade era dispensável sem com isso comprometer as
obrigações para com a Europa, o Euro e o Tratado Orçamental. Mas a esquerda
dentro do PS logo descobriu, sob o fresco verniz socialista de Centeno, um
economista neo-liberal. Disto mesmo se queixava o Bloco, e também o PC: Costa
não tinha a coragem de «cortar com as políticas de direita» com que o PS desde
sempre andara amancebado. Costa encheu-se de mais coragem. A poucos dias do fim
da campanha eleitoral deu uma valente guinada para a extrema-esquerda. E no dia
seguinte às eleições perdidas, encheu-se da coragem toda: declarou guerra
contra os eleitores.
Tenho-o visto como os grandes campeões de xadrez
que se deslocam de mesa em mesa jogando com vários parceiros ao mesmo tempo.
Mas Costa não é campeão de nada (com a possível excepção de um sórdido
tacticismo). Transformou-se num pedinte que mendiga apoio para um governo seu.
Renega a Tradição do PS como fronteira da liberdade e arrasta o partido pelo
chão até às moradas dos seus piores inimigos. Nada disto o envergonha. E,
espantosamente, não lhe ocorre que o feitiço se possa virar contra o
feiticeiro. A primeira porta a que bateu foi a do PC, catedrático da astúcia
estalinista. Jerónimo, aconselhado pelo ainda mais indefectível Francisco
Lopes, mostrou-se afável, tolerante, aberto, com a singela condição de que o PS
«corte com as políticas de direita» que ao longo das décadas têm feito dele um
servo do Capital. Costa saiu satisfeito, a reunião foi «muito positiva». Ou
seja, muito naturalmente, da noite para o dia, o PCP fizera uma transfusão de
sangue e eliminara Cunhal, a Tradição e Toda a Tralha Estalinista. Costa
meteu-se pela boca do lobo dentro e pediu o Diabo em casamento. Mas necessita
de bigamia, porque os deputados comunistas não bastam. Amanhã, segunda, ainda
terá de levar o PS a rastejar até à morada do Bloco.
Disse que já havia escombros. O PS sempre foi um
partido com uma ala mais centrista e uma ala mais a puxar à esquerda. Sócrates
deixou lá dentro uma facção própria que complicou esta antiga arrumação a que
todos estavam habituados. Mas com António Costa, o Partido Socialista está
inextricavelmente balcanizado: são os socratistas, os alegristas, os
seguristas, os galambistas, os soaristas de Mário e de João Soares, alguma
«tralha guterrista», e, surpresa das surpresas, os novíssimos «nunistas». Sim,
nunistas, uma seita ruidosa cujo representante máximo, um tal Pedro Nuno
Santos, Costa leva sempre consigo na augusta delegação socialista que peregrina
pelas outras sedes partidárias. Galamba há muito que se celebrizou por ser
sempre uma espinha cravada da garganta de qualquer moderado. De Nuno Santos só
me lembro do momento em que berrou no Parlamento, com hercúlea coragem, «Quero
lá saber da Troika ou da Europa!» Pelos vistos, singrou. Finalmente, há pelo
menos ainda um grupo de «costistas». Mas quem são, afinal, os costistas?
Indaguei junto dos meus amigos socialistas (que são a maioria). Ninguém me
soube dizer ao certo. Concluí, portanto, por minha conta e risco. «Costistas»
são todos aqueles que se servem de António Costa para que ele usurpe o poder
contra o eleitorado e lhes devolva a «importância», os «lugares», as prebendas
e o acesso ao «spoils system» a que já se tinham habituado. Uma excepção
honrosa cumpre desde já destacar: Sérgio Sousa Pinto não teve estômago para
semelhante caldeirada. Demitiu-se ontem do secretariado do PS.
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