quarta-feira, 14 de outubro de 2015
O usurpador
Maria João Avillez, Observador, 14 de Outubro de 2015
Mesmo sabendo que na política há mais surpresas do que na vida, o mal está feito: António Costa não terá, face ao país ou face a mim mesma, segunda oportunidade para se redimir deste assalto ao poder.
1. De longe o mais extraordinário que está a acontecer em Portugal é que é tudo verdade: não é um sonho, uma ficção, uma mentira, um equívoco, uma ambiguidade, um pesadelo do qual se acorda com indizível alívio apesar do estômago colado às costas e da garganta seca.
Podendo ser isso tudo, a coisa mais forte porém é que é verdade. O último acto desta nunca entre nós estreada peça pode vir a ter como epílogo um governo socialista acolitado de estalinistas e anti-europeístas radicais. Algo totalmente fora deste tempo e deste espaço, mas sobretudo fora das regras eleitorais do Estado de Direito onde vivemos desde há quatro décadas; fora da Europa onde pertencemos; fora do Ocidente de onde somos (ou pode-se porventura arrumar a Nato num qualquer temporário entre-parêntesis ou encaixar a pertença à moeda única numa questão que se pode ou não, tanto faz, «deixar estar» ou « deixar cair»?).
Sim, uma estreia absoluta em Portugal mas, hélas, fornecida por uma realidade, que embora enviezada e politicamente ilegítima é concreta, de carne e osso. Razões: nenhumas a não ser o pior da natureza humana. Eis o que não estava no nosso programa de vida, nem na agenda do país. Não estava de todo. Não me confundam por favor: não se trata de achar que o PS e o seu líder não têm direito a governar com quem quiserem. Têm, desde que antes disso, tenham ganho eleições ou se se provar que quem as ganhou não encontra condições de navegabilidade.
Também não é – seria demasiado imbecil – questão de não gostar de governos de esquerda. Trata-se de os achar politicamente ilegítimos quando, como é o caso, seriam fundados – e escorados – numa usurpação: o PS chegou à meta em segundo lugar e não em primeiro e pronuncia-se, age e comporta-se em festa e frenesim, como se os socialistas tivessem vencido. Ou como se tivesse sido experimentada uma nova governação da coligação que tivesse já derrapado mil vezes.
O País sabe que se trataria de uma usurpação, a Europa também, o mundo também. E last but not least, os portugueses também sabem. Mesmo que fazendo deles parvos-parvíssimos se evoque «a Constituição» como fonte legitimadora de um governo eleitoralmente anormal.
2. Talvez ninguém tenha sintetizado tão certeiramente a frenética, envenenada valsa de António Costa, como Viriato Soromenho Marques quando sobre ele escreve (DN) que «(…) correndo ainda o risco de ser visto como o único caso da III República de um secretário-geral que, em vez de se tornar primeiro-ministro depois de ganhar as eleições, quer ser primeiro-ministro para se manter como secretário-geral, mesmo depois de as ter perdido».
É de tal maneira assim que o veneno da valsa contaminará antes de tudo o próprio Costa, mas sobretudo o PS que eventualmente passará a dois partidos, fruto de uma cisão, mesmo que talvez numericamente menos expressiva. Tornando as coisas claras: o PS, um dos pilares da democracia erguido há mais de quarenta anos e eixo maior da governabilidade do país desde então, iria ao ar em dois segundos, transformando-se numa irreconhecível força política. Disputando taco a taco o espaço do BE e do PCP que chegaram primeiro e já lá têm lugar cativo. Nunca mais se contaria com eles para coisas sérias.
3. Ao contrário, o espaço à direita do PS, sairá, não se duvide, ileso de tudo isto. Enganado mas incólume. Se vierem a desaguar na oposição, PSD e CDS serão implacáveis. Mais unidos que nunca, quando falam do país sabem o que dizem e do que falam. Estão serenos como um lago suíço e, ao contrário de António Costa, não estão desesperados, nem têm pressa. Sabem que o tempo corre a seu favor. Têm agido com responsabilidade e inteligência política. Não foi devido a eles que as bolsas já hoje se inquietaram e ainda a procissão não saiu da Igreja.
À hora a que escrevo não começou a segunda reunião entre o quinteto socialista e o friso da coligação mas já se conhece aquilo que mais importa e que habilitará o país a julgar da boa fé dos protagonistas políticos. Refiro-me à pertinência do trabalho politico feito pelo PSD e pelo CDS sobre o guião de António Costa. Há quem veja na atitude do PSD e do CDS destes últimos dias uma anemia, um excesso de placidez, uma desistência. Puro engano. Ninguém dançou valsas em falso, apresentaram trabalho político e com ele encostaram ainda mais António Costa ao seu próprio limite. Tudo ficou à vista de todos.
4. Quando há já bem mais de um ano escrevi aqui um texto de opinião em que deixava vir à tona das palavras a minha simpatia pessoal por António Costa (e sim, sempre foi pessoal e nada política, o que de resto só piora hoje as coisas), um bom amigo alertou-me: «vais pagar caro esse artigo, e lembra-te disto quando daqui a uns tempos ele te for seriamente cobrado».
Pois bem, já está a ser. A factura é caríssima, a responsabilidade é minha e não tenho idade nem para dizer que me enganei, nem para fingir que não é «bem assim». É muito pior que «bem assim». Sucede que assumir um engano (o meu) desta natureza não o torna automaticamente mais explicável, mais compreendível ou compreensível e é por isso que, – repito – é preciso ir buscar a chave deste alarmante comportamento de António Costa ao pior que pode haver dentro de alguém. E mesmo sabendo nós que na política há ainda mais surpresas do que na vida, o mal está feito: haja ou não haja estreia da peça, António Costa não terá, face ao país ou face a mim mesma, uma segunda oportunidade para se redimir deste seu assalto ao poder.
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