Maria de Fátima Bonifácio, Observador, 14 de
Abril de 2016
Votei em Passos Coelho porque o achava talhado para
padrinho de um casamento a meu ver feliz e necessário. Espero que ele não se
reinvente. À sua volta, quase só vejo anões.
Desde o Congresso do PSD, tão morno e tão maçador que foi
qualificado de «anestésico», correm as lamúrias sobre a «fragilidade» e o
«isolamento» de Passos Coelho, de quem o povo laranja teria esperado que se
reinventasse, mas que, para grande decepção dos adeptos, se apresentou ao
conclave igualzinho a si mesmo. Ainda por cima, disse – e repetiu – com toda a
clareza que o PSD não voltaria ao poder na semana seguinte, nem ainda no mês de
Maio do ano em curso, o máximo de espera suportável. Que não: que a actual
maioria, legal e legítima, se revelara mais sólida do que se julgara; que era
impossível assinar-lhe uma longevidade certa e definida; e que, por
conseguinte, o PSD teria pela frente uma longa, indeterminável fase de
oposição. Passos, portanto, não tinha nada de verdadeiramente empolgante para
oferecer. Ganhara as eleições de 2015, é certo; operara o milagre de conseguir
que Portugal tivesse uma «saída limpa» do programa de assistência da Troika, é
também certo; mas o seu tempo acabara. E só não teria acabado se ele tivesse
demonstrado uma acrobática habilidade para se «reinventar» a si mesmo, o que
infelizmente não se verificara. De Passos se poderia dizer que não aprendera
nada, nem esquecera nada.
Não me tinha ocorrido a ideia de que as grandes
qualidades de Pedro Passos Coelho, que estiveram na origem do seu sucesso
político e governativo, só tivessem, afinal, validade cíclica. Julgava que o
realismo, o pragmatismo, a exigência, a resiliência, a coragem, a força de
carácter, a integridade política eram trunfos para todas as estações. Pelos
vistos, não são. E não são certamente os atributos requeridos, necessários ou
sequer desejáveis para um «novo ciclo político». Quais serão eles?
Pesquei à linha nas declarações dos seus opositores.
Desde logo, claro, capacidade afectiva e vocação sentimental. Capacidade para
se condoer, de forma que seja bem visível e audível, com os pensionistas mais
pobres, por exemplo. Depois, claro, um módico de «maleabilidade», que no
dicionário dos seus críticos dentro do PSD significa predisposição para começar
por recapitular erros, e acabar num mea culpa; ou seja, renegar
tudo o que fez dele o líder e candidato a primeiro-ministro mais votado nas
eleições de Outubro de 2015. E significa ainda, no dicionário dos seus
adversários mais ressabiados, «abertura» a um «diálogo» com António Costa que
vá evoluindo para uma compreensão mútua que, por sua vez, acabe por desaguar
numa colaboração afável, franca e prestimosa. Seria uma maneira elegante de o
presidente do PSD romper o seu alegado isolamento. Quer dizer, uma maneira de
os pequenos e os grandíssimos boys do
PSD — os «mais magoados» e os «mais ansiosos» — não fazerem a travessia da
oposição em regime de absoluta «abstinência».
Para inaugurar tão virtuosa «abertura», não basta
declarar (como Passos declarou num surpreendente momento de fraqueza) — «Social-democracia
sempre!». Não. É preciso mais. É preciso expurgar todo o seu discurso do mais
ténue vestígio da danosa ideologia liberal ou neoliberal que, durante o seu
mandato como primeiro-ministro, pespegou no Partido Social Democrata uma nódoa
diabólica. E ainda não chega. José Eduardo Martins, um crítico que já ascendeu
a herói pela extraordinária coragem de ter comparecido em Espinho, queixou-se
no Diário de Notícias de que «No passado recente […] escasseou
a sensibilidade social, foram muitos os momentos de deriva ideológica em que a
matriz social-democrata foi esquecida.» Será que o aspirante a futuro
presidente do PSD ignora que a social-democracia é cara demais para um país que
Passos tirou da bancarrota, um feito que ele próprio reconhece no mesmo texto?!
Pouco importa: houve «deriva ideológica», ponto. Como
revela o jornalista Vítor Matos, «Não basta falar de desigualdades para se
tornar mais social-democrata.» Passos que não venha agora com essa. É velha;
está gasta. Em Espinho, Passos «não levou ao país nem ao partido nada de novo».
Não forneceu uma só pista que permitisse diferenciar o PSD «do que fez nas
últimas legislativas». Mais: nada disse «sobre aquilo que é hoje essencial para
o centro-direita»; apresentou-se o mesmo Passos, «com o mesmo tom, a mesma
estratégia, a mesma resiliência, a mesma frieza, a mesma teimosia». Mais grave
ainda: «Em tempo de afectos na política», nem ao menos se emocionou ou teve
«uma palavra de afecto para os pensionistas e Marcelo ganhou assim». E Vítor
Matos conclui muito logicamente: «Parece que não aprendeu a lição.»
Qual lição? A de ter vencido as eleições com esta carrada de defeitos? Relapso
e contumaz, Passos «manteve as ideias que trazia da campanha eleitoral». Nada
me parece mais acertado. Apesar de todo o foguetório e de todos os malabarismos
para impressionar incautos, a verdade é que estamos perante «péssimas notícias»
no horizonte económico-financeiro, considerando Graça Franco (4.4.16) que o que se perspectiva «é
mau demais para continuar a fingir que não se passa nada».
Alguém me explique por que haveria de mudar aquelas
ideias. Passos apresentou-se em campanha com um programa de governo para o novo
ciclo pós-Troika. Ganhou as eleições, mas o Parlamento recusou-o para
primeiro-ministro. Deveria, por isso, deitar as suas ideias borda fora e
improvisar um programa diferente pelo motivo de ter passado à oposição? A
táctica oposicionista, essa, suponho que seja diferente do estilo e modo de
estar no poder. Mas o que em campanha era julgado bom e necessário para o País,
transforma-se em mau e desnecessário só porque se transitou para a bancada do
combate contra o governo? E, já agora, «o que é hoje o essencial para o
centro-direita»? Ser o mais social-democrata possível? Ter um discurso idêntico
ao do partido costista e adjacentes? Por outras palavras: competir com a
esquerda radical para ver quem gasta ou promete gastar mais?! Como conclui muito acertadamente João Miguel
Tavares (Público, 5.4.16), se a «geringonça», por milagre, resultar, no que
também eu não acredito, «o tempo será sempre de António Costa, e nunca
dos sociais-democratas do PSD».
Esta verdade, porém, não entra nas cabecinhas dos «mais
magoados» e dos «mais ansiosos» (Vítor Matos), que pedem a auto-reinvenção de
Passos, o exortam a ser mais social-democrata e lhe exigem «novidades».
Pedem-lhe, em suma, o poder de volta o mais rápido possível e a qualquer preço.
Estou em crer que Passos não se deixará empurrar pela esquerda do partido para
uma derrota anunciada. Sinal disso foi a promoção de Maria Luís. Tenho grande
apreço pela ex-ministra. Apreço e simpatia: gosto de pessoas inteligentes,
convictas, intrépidas, e dispenso expansões públicas de emoções e sentimentos.
Embora não tenha a certeza de que fosse preciso um sinal tão forte, a roçar a
provocação, o sinal confirma que Passos Coelho não faz a menor tenção de se
reinventar.
E ainda bem. Porque se algo é preciso reinventar – e ele
é o homem certo para isso – é a própria social-democracia. Porquê? Porque,
historicamente, esta já venceu: o que começou a erguer sobre os escombros da
Segunda Guerra enraizou-se, vingou, desenvolveu-se e generalizou-se. É hoje, no
Ocidente europeu, um património civilizacional tanto da esquerda como da
direita. O que falta para sair do impasse actual e arrombar portas que lhe
permitam continuar a viver? Falta remover os obstáculos, fruto de ideologias e
doutrinas obsoletas, que entravam o progresso do capitalismo.
Sim, do capitalismo. Porquê? Porque o capitalismo,
assente na propriedade privada e na concorrência, é historicamente o regime que
mais riqueza e prosperidade gerou até hoje, e que retirou centenas de milhões
de pessoas da miséria extrema. E é também, em toda a História, o regime
económico que mais liberdade, individual e colectiva, concede às sociedades.
Num mundo globalizado e que já não dorme, a estatização da economia (e portanto
da sociedade), as planificações económicas e os proteccionismos de outrora não
são possíveis, nem desejáveis. A social-democracia de cariz keynesiano está
esgotada. E a sua urgente reinvenção terá de provir, e só pode provir de um
casamento harmonioso com o liberalismo económico. Não é uma contradição e ainda
menos um paradoxo. Quem tem medo da palavra «liberal»?
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