Paulo Ferreira,
Observador, 8 de Abril de 2016
O «espírito SCUT» está vivo e, aqui e ali,
reaparece travestido de várias formas. Ele reencarnou nos manuais escolares
«gratuitos» e nos mega-descontos da CP, por exemplo.
Lembram-se das SCUT? Eram as auto-estradas «sem
custo para o utilizador». Não tinham portagens, não se pagava nada para lá
circular. Mas como não há milagres, embora muitos governantes gostem de fazer
passes de mágica, a factura era paga por alguém. Neste caso, pelo contribuinte.
Funcionava assim, através das famosas parcerias público-privadas: o Governo
lançava o concurso, os privados construíam e suportavam esse investimento e
depois ficavam com a concessão da estrada a troca de umas centenas ou milhares
de milhões de euros anuais durante esse período de concessão que durava cerca
de 30 anos. Passassem por ali dois mil ou apenas dois carros por hora os
privados tinham a sua confortável rentabilidade assegurada. Sem risco, porque o
Estado cobria a falta de procura. E ainda pagava a manutenção.
Foi assim que enchemos o país de «AA qualquer
coisa», depois da fantástica descoberta do modelo no governo de António
Guterres.
Eram, portanto, sem custos para o utilizador mas
com muitos custos para o contribuinte. Tantos que quando as contas do Estado se
tornaram insuportáveis de sustentar não houve outro remédio senão instalar
pórticos de portagem, passando os automobilistas a pagar o que até então era um
encargo de todos os contribuintes, tivessem carro ou não, circulassem por ali
ou não.
Não aprendemos grande coisa com isso. O «espírito
SCUT» está vivo e, aqui e ali, reaparece travestido de várias formas.
Dizem-nos que os manuais escolares vão passar a ser
gratuitos para todos os alunos do 1.º ano já no arranque do próximo ano
lectivo.
Que os livros sejam suportados pela Acção Social
Escolar para todos os que, comprovadamente, não os podem comprar é
inquestionável. Ninguém pode deixar de ter as condições mínimas de estudo por
questões económicas e se o Estado Social serve para alguma coisa esta está no
topo das prioridades. Isso já acontece, colocando manuais escolares à
disposição dos beneficiários.
Também é inquestionável que uma das prioridades é
acabar com a renda que as editoras recebem à custa das famílias, obrigando-as a
comprar manuais e livros de actividades novos em cada ano lectivo, num negócio
que conta com a cumplicidade de quem decide e aprova os manuais para cada ano –
sobre isto é obrigatório ler este texto de António Araújo.
Mas não é isso que vai ser feito. Os manuais passam
a ser «gratuitos» para quem os utiliza mas são pagos pelo Estado, portanto por
todos os contribuintes, às editoras, que mantêm o seu negócio. Como a medida
vai ser universal, as famílias mais abastadas serão tão beneficiadas como as
mais carenciadas. É o mesmo truque de magia das SCUT. Neste caso a factura não
é paga na livraria mas sim na repartição de finanças.
Outro exemplo. Há semanas, no meio da «guerra»
comercial das ligações aéreas Lisboa-Porto – sobretudo depois dos preços de
saldo que a Ryanair e a Easyjet começaram a cobrar nessa rota – a CP decidiu
entrar na liça. Anunciou descontos de 65% nos bilhetes comprados com uma semana
de antecedência que, no caso da classe turística do Alfa, passam de 30,30 euros
para 11 euros. É óptimo que a CP tenha uma forte dinâmica comercial, que
melhore os seus serviços e tente cativar passageiros. Mas há aqui um pequeno
detalhe: a CP é uma empresa pública, historicamente deficiária e com uma dívida
monstruosa. Adivinhem, portanto, quem paga as perdas de receita que não sejam
compensadas com corte equivalente de custos: se respondeu «o contribuinte»,
acertou.
Em 2014 (as contas do ano passado ainda não estão
disponíveis) a CP teve prejuízos de 161 milhões de euros, fechou com uma dívida
acumulada de 4,5 mil milhões de euros e manteve-se tecnicamente falida, com
capitais próprios negativos de 3,6 mil milhões de euros — isto quer dizer,
grosso modo, que se a empresa tivesse sido fechada nessa altura a factura que
sobrava para os contribuintes era essa, de 3,6 mil milhões de euros.
Ou seja, os descontos de que os passageiros
beneficiam na CP não serão pagos por mais ninguém senão os contribuintes.
Eu, que não hesito em preferir o comboio sempre que
vou ao Porto — é tão rápido e mais barato do que o automóvel, é cómodo, permite
que se vá a trabalhar durante a viagem com a rede wifi disponível e deixa-nos
nos centros das cidades — agradeço a amabilidade e o desconto, que aproveitarei
com prazer. Duvido é que o meu vizinho da frente, que nunca precisa de viajar
no Alfa, sinta o mesmo prazer por pagar uma parte substancial do meu bilhete de
comboio quando desconta o IRS e paga o IVA no supermercado para suportar as
promoções de uma empresa pública cronicamente deficitária.
Sem comentários:
Enviar um comentário