João Miguel Tavares,
Público, 26 de Abril de 2016
É certo que nem toda a gente é Vasco Lourenço, mas
o seu espírito paira sobre as cabeças do PS, do Bloco, do PCP e de metade do
PSD.
A jornalista da SIC Anabela Neves, que já assistiu
a muitos 25 de Abril no Parlamento, detectou no final das cerimónias de ontem
diferenças significativas na performance do hino nacional pela banda da GNR:
«Palmas mais fortes do que é habitual ao hino, que desta vez se ouviu bem mais
na sala de sessões do Parlamento. Muita gente, muitos deputados, finalmente a
cantarem.» Oh, que lindo. Nada como a esquerda voltar ao poder, para mais toda
juntinha – Abril pode novamente voltar a ser Abril e o hino pode novamente soar
como um hino.
Durante a manhã de ontem, os acordes d’A
Portuguesa escutaram-se espectacularmente. A secção de sopros da banda
da GNR soprou com notável entusiasmo. A percussão percutiu com outro músculo.
Os deputados cantaram como se tivessem um Manuel Alegre dentro deles. Os
capitães de Abril ruboresceram de novo as galerias com os seus cravos. A
normalidade institucional e constitucional mostrou-se, enfim, reposta. Como
afirmou o deputado do PEV, «Abril está de regresso».
Foram longos anos de ausência. Durante a governação
de Pedro Passos Coelho houve Abril, o mês, mas não Abril, o estado de espírito,
que, como todos sabemos, apenas desce sobre as almas quando a esquerda está no
poder. O Abril da direita não é verdadeiro Abril – é um Abril diminuído e
poluído, que se suporta por penoso dever democrático, mas que nunca se chega
propriamente a aceitar. Ferro Rodrigues celebrou o regresso da Associação 25 de
Abril ao Parlamento com um tom tão entusiasmado («que bom é ver-vos de volta a
esta casa que é também a vossa casa!») que só faltou pedir desculpa a Vasco
Lourenço pelo comportamento dos anteriores inquilinos. Os tais inquilinos que,
como recordou Lourenço à saída, tinham «uma postura anti-25 de Abril».
Perguntarão os leitores: uma «postura anti-25 de
Abril» porquê? Acaso Passos Coelho tomou o poder de assalto? Acabou com as
liberdades individuais? Silenciou a comunicação social? Agiu contra a oposição?
De que forma pode ter ele sido «anti-25 de Abril»? A resposta é simples: é que
se para uns a democracia é tudo, para a Associação 25 de Abril e para dois
terços do actual Governo e partidos adjacentes a democracia é pouco. Democracia
sem um projecto de esquerda não é democracia, porque boa parte da esquerda
portuguesa ainda vive mentalmente no tempo do pacto MFA-Partidos – um povo
pouco esclarecido pode fazer gripar o motor do processo revolucionário.
Dir-me-ão que os tempos são outros. Sim, com
certeza que são, mas o regime continua a transportar consigo a flor-de-lis da
esquerda, que se torna muito visível nos dias mais carregados de simbolismo,
como é o caso do primeiro 25 de Abril do primeiro-ministro António Costa. Após
a revolução, o CDS teve de fingir que era de centro e Sá Carneiro que era de
esquerda, e quatro décadas depois só não tem «uma postura anti-25 de Abril»
quem continuar a fingir.
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