sexta-feira, 6 de maio de 2016


A desfaçatez intelectual de Pacheco Pereira


Francisco Mendes da Silva, Jornal de Negócios, 4 de Maio de 2016

No caso de Pacheco, o que hoje orienta as suas opções políticas é um ressentimento pessoalíssimo contra a geração de Passos Coelho no PSD.

Numa recente deambulação pelas livrarias de Madrid, chamou-me a atenção «La Desfachatez Intelectual», uma invectiva do sociólogo Ignacio Sánchez-Cuenca contra a prepotência e leviandade com que muitos intelectuais, com prestígio noutras paragens (na literatura, na academia), comentam a actualidade política. O livro atira sobre gente que aprecio (Vargas Llosa, Javier Cercas), mas acerta no alvo: às vezes parece que o brilhantismo literário e o rigor escolástico são fonte de legitimidade para uma espécie de desanuviamento lúdico e relaxamento das regras da honestidade no ofício menor da análise política.

No passado sábado, Pacheco Pereira publicou um artigo que encaixa perfeitamente nesta tese («Para a nossa direita radical o Papa é do MRPP», Público, 30/04/2016). Segundo Pacheco, os partidos da direita portuguesa estão sob resgate de uma ideologia radical – o liberalismo antiestatista – e esse radicalismo é demonstrado pela forma como os apoiantes do PSD e do CDS se manifestam nas redes sociais, habitualmente entre a infâmia dos comentadores heterodoxos à direita (Pacheco incluído) e o insulto racista dirigido a António Costa.

O artigo é um monumento à desonestidade. Desde logo, não nomeia um único caso de «apoiante» que ilustre a teoria. Aliás, quem conhece as tais redes sociais percebe que Pacheco alude apenas a duas ou três pessoas que nem sequer integram qualquer nomenclatura – restrita ou lata – dos partidos do centro-direita. A ideia é deixar tudo sob uma névoa impressionista para poder ligar o estilo de uns poucos à estratégia institucional do PSD e do CDS. E isto enquanto expressamente se absolve a esquerda das mesmas práticas. Logo a esquerda, que tantas vezes faz política partindo da desonra moral do adversário (a direita nunca está simplesmente enganada – está sempre a soldo de interesses obscuros).

O pior da desonestidade do artigo está, porém, na forma como Pacheco deixa entender que vê a «ideologia» que enjeita. O radicalismo como arma de arremesso corrente e indiscriminado contra adversários gera um relativismo perigoso, uma falta de critério que nos deixa desarmados contra os verdadeiros radicalismos. Pacheco sabe que o liberalismo – a teoria das liberdades, da economia de mercado e da limitação do poder – está na origem da emancipação e progresso dos povos. Tem cultura para isso. Tem cultura e tem passado. Pacheco já foi um falcão neoliberal, um defensor da destruição criativa do capitalismo. Como as «redes» vieram lembrar, Pacheco já lutou contra «o socialismo em que vivemos impregnados, e que hoje se chama 'estado-providência', ou 'modelo social europeu', que nos condena à mediocridade». Pacheco já achou que precisávamos de «mais liberalismo»: sem mais «crise» (da de que falava Schumpeter) e sem mais «boa» insegurança, não somos capazes de mudar. O Estado faz tudo para nos poupar a essa insegurança, e, como toda a Europa, afundamo-nos, pouco a pouco, na manutenção, geracionalmente egoísta, de modelo social insustentável (Sábado, Outubro de 2005).

Como qualquer historiador percebe, por vezes são as pequenas narrativas, e não os grandes movimentos, que determinam a História. No caso de Pacheco, o que hoje orienta as suas opções políticas é um ressentimento pessoalíssimo contra a geração de Passos Coelho no PSD. Esse ressentimento cavou um abismo entre o que um dia pensou e o que actualmente diz pensar. Na profundidade desse abismo está a medida da desfaçatez intelectual de Pacheco Pereira.





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