, médico
psiquiatra,
É uma
incoerência lutar contra os maus tratos a animais, ficando ao mesmo tempo
indiferente face a uma cultura que promove a crueldade obscena entre seres
humanos, sob inspiração das «sombras de Grey»
O caso
do jovem que filmou um vídeo a maltratar um cachorro incendiou as redes
sociais, motivou declarações inflamadas de diversas individualidades públicas e
quase deu origem a um linchamento popular. Não está em causa repudiar os maus
tratos sobre os animais, mas é necessário referir que actualmente a sociedade
tem algumas contradições relativamente ao tema da violência que importa
debater.
Um dos
filmes mais vistos em Portugal no ano passado foi «As cinquenta sombras de Grey»,
adaptado do romance da autora britânica E. L. James, que vendeu milhões de
exemplares em todo o mundo. Na sinopse da obra pode ler-se: «Anastasia vê-se
envolvida nos prazeres do sadomasoquismo, tornando-se o objecto de desejo do
sádico Grey. No entanto, apesar de se deixar levar pelas sensações, ela
continua a sua busca do amor verdadeiro…»
A
sociedade, que se ergue de forma enérgica contra a violência sobre os animais,
é a mesma que assiste, numa aparente indolência acéfala, a um filme que promove
a violência perversa de um homem sobre uma mulher. Esta exaltação do
sadomasoquismo — que é considerado um desvio do comportamento sexual —, foi
inclusivamente incorporada numa estratégia de marketing para divulgação do
filme, como uma forma de celebração do dia dos namorados. Um dos cartazes
promotores do filme referia: «Perca o controlo». Dito de outro modo, «estimule
a sua agressividade, bata-lhe com força, pois esse é um comportamento
socialmente aceitável e recomendável». Apesar dos chicotes terem esgotado em
várias sex shops britânicas após a estreia do filme,
praticamente não se ouviu uma voz de repúdio ou de indignação. A coisa é
suspeita. Mas, tal como referiu Ortega y Gasset, as pessoas não costumam pôr-se
de acordo a não ser nas coisas um pouco velhacas ou um pouco malucas.
Estranhamente,
também não se tem procurado relacionar esta autêntica promoção social do
sadomasoquismo e o aumento do número de casos de violência no namoro. Por
exemplo, as queixas na PSP relacionadas com situações de violência no namoro
têm vindo a aumentar. Em 2015 registaram-se 1 680 participações de violência
entre casais de namorados, mais 130 face ao ano anterior.
Mas o
tema é sério, e foi justamente abordado, através de um artigo publicado em
2013, na revista Journal Womens Health, por um conjunto de investigadores
(Bonomi et al.) da Universidade de Ohio. Nesse artigo, intitulado «Double crap!»
abuse and harmed identity in Fifty Shades of Grey, os autores referem que a
obra revelou a existência de padrões de violência íntima disseminada para com o
parceiro seja masculino ou feminino, considerando como um dos maiores problemas
dos nossos tempos. Além disso, salientam a existência de um aumento de
conteúdos literários com padrões de violência perigosa, que está a ser
perpetuada na cultura popular.
Os
jovens e os adultos têm de ser alertados para o risco de estarem a ser
sub-repticiamente manipulados. Obviamente que não se trata de censurar a
criação literária sobre este tema, mas é necessário ter sentido crítico sobre o
mesmo. Não se devem promover comportamentos egocêntricos, desviantes e
perigosos (todos os anos morrem indivíduos através da prática do
sadomasoquismo, principalmente por sufocação) sob o pretexto de um hedonismo
ilusório. A violência ofende a dignidade da pessoa humana, pelo que não será
através da sua promoção, com publicações de conteúdo erótico, que esta situação
se altera.
O
sadismo implica a obtenção de satisfação perante um acto real (não simulado) do
qual resulta sofrimento físico, psicológico, incluindo humilhação para a
vítima. Está associado à perturbação anti-social da personalidade, também
conhecida como psicopatia. Nesta perturbação da personalidade existe uma
incapacidade para a conformação com as normas sociais, no que diz respeito a
comportamentos legais, e habitualmente um longo historial de violação dos
direitos dos outros. Podem começar por se expressar antes dos 15 anos, através
de atitudes de violência para com as outras crianças e adolescentes —
designadamente no namoro — ou para com os animais.
Embora
os factores etiológicos sobre a personalidade anti-social sejam complexos, é
fundamental que haja censura social sobre quaisquer comportamentos que envolvam
violência (inclusive sexual) para se poder prevenir os abusos. As vítimas de
violência não são apenas os animais, mas também as pessoas, e principalmente as
mulheres. A sociedade não se pode transformar numa incubadora de mentes
perversas. É, obviamente, uma incoerência lutar contra os maus tratos aos
animais, ficando ao mesmo tempo indiferente perante uma cultura que promove a
crueldade obscena entre seres humanos, aceitando que um indivíduo possa
aproveitar-se de outro, tratando-o como mero objecto de prazer sexual.
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