P. Gonçalo P. de Almada
É como a gripe, esta recorrente mania: todos os anos, mais dia menos dia, lá aparece o vírus da não discriminação, a propagar a epidemia do igualitarismo e a exigir, em consequência, a reestruturação de algum órgão ostensivamente discriminatório, ou a aprovação de leis que combatam a exclusão dos grupos sociais mais desfavorecidos.
Exagero? De modo algum! Em plena silly season, dois artigos do Público, de 10 de Agosto passado, pugnam pela não discriminação.
No primeiro, o autor insurge-se contra a composição alfacinha do Conselho de Estado. Segundo o dito ensaísta, este órgão só tem duas mulheres; não tem ninguém mais à esquerda do que os conselheiros de esquerda que já lá estão; não tem membros que não sejam de Lisboa, excepto os que o não são, como o autarca de Gaia e os líderes insulares; não tem nenhum representante da Igreja Católica, nem das artes, nem das letras, nem da sociologia (?!), nem da história, etc. Tudo, claro, por culpa do Presidente da República que, apesar de algarvio confesso, «lisboetizou», segundo a escrita do mesmo autor, o supostamente nacional Conselho de Estado.
Não me compete, como é óbvio, comentar a sua opinião política que, ao exigir a representatividade institucional dos vários grémios profissionais e sociais, parece eivada de um certo saudosismo corporativista. Não posso, contudo, deixar de registar a sua curiosa tese de que a justiça decorre da igual, ou proporcional, representação, nesse órgão consultivo do chefe de Estado, das mais expressivas condições ideológicas, regionais, religiosas, etc.
A bem dizer, com a mesma razão, ou falta dela, também se deveria exigir que o sexo feminino, o norte transmontano, o barlavento algarvio, os evangélicos, os fadistas e os mais exímios pensadores pátrios estivessem representados na nossa selecção de futebol, cuja composição também parece muito politicamente incorrecta, sobretudo se se pensar que essa equipa deveria ser, de algum modo, representativa da nação.
O outro texto versa sobre a Moldávia que, não obstante o assédio da libertina Comunidade Europeia, ainda resiste à política da total permissividade em relação à orientação sexual. Segundo «um estudo de percepções da população» – vá-se lá saber o que isto seja! – «os moldavos, afinal, discriminam. Discriminam, sobretudo, deficientes físicos ou mentais, pobres, portadores de VIH, homossexuais, ciganos, mulheres». Pelos vistos, segundo a abalizada opinião da autora do artigo, em que não falta o coitadinho do costume, este é o principal crime dos moldavos: «discriminam»! E, claro, uma nação que discrimina, não pode fazer parte da nossa moderna e decadente Europa.
Mas, afinal, discriminar é mau? Por exemplo, quando se impede uma senhora corcunda de ser top-model, está-se a cometer uma injustiça? E quando se proíbe que um invisual seja árbitro de futebol, pode-se afirmar que se está a ser iníquo? A não-aceitação de um paralítico, como membro da equipa nacional de atletismo, é um acto punível, por arbitrário e contrário às convenções internacionais dos direitos humanos e de defesa dos deficientes? A norma que impede os cidadãos originariamente estrangeiros, mas naturalizados portugueses, de concorrerem à presidência da República, é ilegal por ser xenófoba? Uma escola que não aceita, para seu professor, um analfabeto, está a cometer um crime contra a igualdade de direitos que a Constituição consagra? A atribuição do Prémio Nobel da Química, a um determinado cidadão, tipifica um delito de injúrias aos restantes químicos? E se um encenador recusar a uma qualquer Julieta o papel de Romeu, ou a um qualquer Romeu o papel de Julieta, está também a incorrer num comportamento ilícito, neste caso por razão do respectivo sexo?
Discriminar é, apenas, distinguir. Será injusto quando distingue o que é igual, mas não quando diferencia o que é diverso. Os corcundas, os cegos, os paralíticos, os cidadãos nacionais de origem estrangeira, os analfabetos, os cientistas, os homens todos e todas as mulheres são iguais quanto à sua comum e inviolável dignidade humana. Mas não quanto às suas capacidades físicas e intelectuais, nem às correspondentes aptidões sociais, políticas e profissionais.
Aliás, a justiça não é, por definição, igualitária, mas discriminatória. Não trata a todos por igual, mas procura atribuir a cada qual o que lhe compete, não apenas em função da sua dignidade humana, mas também das suas características pessoais objectivas que, obviamente, não podem ser ignoradas, sobretudo quando se trata de lhes reconhecer uma específica função social. Não deixa de ser curioso que os grupos que antes mais apelavam à igualdade na diferença, sejam também agora os que mais reivindicam a indiferença na desigualdade, na medida em que não toleram a discriminação do que é, logicamente, diferente.
Todos iguais? Com certeza, no que respeita à comum natureza e dignidade do ser humano, bem como a todos os direitos e liberdades fundamentais. Mas todos diferentes também. A ditadura do igualitarismo, ou da não discriminação, não serve a causa da justiça: só seremos efectivamente todos iguais quando se reconhecer, também a nível social e jurídico, que somos todos diferentes.
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