Pedro Mexia,
Expresso
Fulano escreve «de
acordo com a antiga ortografia», diz o aviso que acompanha estas crónicas. Eu
agradeço que o «Expresso» me permita a objecção de consciência face ao chamado
Acordo Ortográfico, e percebo que indique quem segue ou não as novas regras,
para evitar confusões; mas suspeito que esta fórmula foi inventada por alguém
que pretende colar aos dissidentes o vocábulo «antiga», como se nós
escrevêssemos em galaico-português. Como se a língua que a maioria dos
portugueses ainda usa se tornasse por simples decreto «antiga»: antiquada,
decrépita, morta.
Eu não sou pela
«antiga ortografia» por caturrice. Estou contra o «acordo» porque me parece uma
decisão meramente política e económica, sem verdadeiro fundamento cultural. Os
legisladores impuseram aos falantes uma «ortografia unificada», que, dizem,
garante a «expansão da língua» e o seu «prestígio internacional». Mas a
expansão da língua passa por uma política da língua, que Portugal, por exemplo,
não tem tido, ocupados que estamos em fechar leitorados no estrangeiro, em
aplicar uma abominável terminologia linguística nas escolas, em publicar um
lamentável Dicionário da Academia, em expulsar Camilo dos currículos enquanto o
substituímos por diálogos das novelas. Quanto ao prestígio internacional,
lamento informar que foi o sucesso económico, e não a «língua de Camões», que
transformou o Brasil numa potência.
Não é este «acordo»
que vai trazer expansão e prestígio ao português. Contenta uns «acadêmicos espertos
e parlamentares obtusos», como escreveu um colunista brasileiro, e alguns
editores, que têm bom dinheiro a ganhar com esta negociata. Mas é difícil imaginar
que alguém acredite que vem aí uma «unificação da língua» só porque se legislou
uma «unificação da grafia». Um brasileiro continuará a falar uma língua
muitíssimo diferente do português de Portugal, diferente em termos de léxico,
de sintaxe, de fonética. Um português, com um exemplar do Acordo debaixo do
braço, bem pode perorar em Iraguaçu, que alguém lhe continuará a perguntar
«oi?», pois não percebeu metade. E isso não tem problema algum, a «lusofonia»
não vale pela unidade mas pela diversidade, pelo facto de haver um português
europeu, africano, americano e asiático. E ninguém é dono da língua: nem os
brasileiros por serem mais, nem os portugueses por andarem cá há mais tempo,
muito menos uns académicos pascácios que dicionarizaram «bué» e «guterrismo».
É significativo que
o próprio «acordo» reconheça o fracasso do projecto de «unificação da língua».
Dadas as flagrantes diferenças entre o português e o brasileiro, os sábios são
obrigados a admitir a existência de duplas grafias, uma cá, outra lá [África,
para estes iluministas, é paisagem]. Pior ainda, introduzem uma “grafia
facultativa” que estabelece como termos lícitos tanto «electrónica» como «eletrónica»,
«electrônica» ou «eletrónica». O linguista António Emiliano deu-se ao trabalho
de enumerar em livro os erros, contradições, imprecisões e dislates desta lei
iníqua. Leiam-no. E não digam que ninguém avisou.
A minha recusa deste «acordo» não é casuísta nem temperamental. Não se trata apenas de não gostar de
ver os espectadores transformados em bandarilheiros «espetadores»; de não
perceber como é que os habitantes do «Egito» não são «egícios»; de ficar
estupefacto com o «cor-de-rosa» com hífen e o «cor de laranja» sem hífen; de
prever os imparáveis espalhanços de um «para» do verbo «parar» que perde o
acento e talvez o assento. É isso mas é mais que isso: eu discordo
veementemente do critério fundamental do «acordo»: a primazia da fonética sobre
a ortografia.
É verdade que todos
falamos antes de sabermos ler e escrever, mas quando aprendemos essas competências
sofisticadas interiorizamos uma língua diferente da falada, que nalguns casos
nem tem exacta correspondência fonética mas que se liga a uma memória histórica
e cultural. Quando aprendemos a ler, fixamos a forma gráfica das palavras, uma
forma que memorizamos e que nos acompanha a vida toda, de modo que nunca mais
lemos letra a letra, mas reconhecemos de imediato uma grafia aprendida há
muito, «antiga», sim, muito antiga. A ortografia não é uma transcrição
fonética, nem podia ser, dadas as variantes do português falado. Ou nas
pronúncias regionais. Como escreveu Emiliano, não vamos criar uma «ortografia
do Alto Minho» só porque a pronúncia de Caminha é diferente da pronúncia de
Cascais. Ou de Curitiba.
E não me digam que
são pouquíssimas as palavras alteradas: procure quantas vezes neste jornal
aparece ação, ator, atual, coleção, coletivo, diretor, fato, letivo, ótimo, e
repare que são algumas das mais usadas. É por isso que o cavalo de Tróia das
“consoantes mudas” deve ser denunciado. Em primeiro lugar porque não são mudas
coisíssima nenhuma: abrem as vogais precedentes, e numa língua danada por
fechar vogais. Depois, porque não são inúteis, ajudam a distinguir termos
homógrafos e indicam a etimologia de palavras afins. Fazem sentido, ao
contrário do «acordo».
Dizem os acordistas
que a nova ortografia «simplifica» e «facilita a aprendizagem». Toda a gente
sabe o que significa «facilitar a aprendizagem», e os resultados que isso deu
no ensino. E se a intenção é «simplificar», que tal escrevermos todos em
linguagem de telemóvel? Por mim, continuarei antigo.
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